quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Ousar para reinventar a humanidade - II

Juvenal Arduini


Verdade subversiva
O poder, sob múltiplas formas, deveria estar sempre a serviço dos grandes valores da humanidade. A finalidade do poder é beneficiar a coletividade, e não a autoglorificação dos dirigentes, O poder que não promove o crescimento da sociedade resvala em absolutismo autocêntrico que menospreza as exigências da verdade.
Verdade não é apenas um princípio abstrato. Verdade é a realidade existente, o fato concreto, o conhecimento comprovado. A verdade desoculta o desconhecido, salienta a dignidade da pessoa, reivindica liberdade e igualdade, sustenta o significado ontológico da espécie humana, preserva os valores consistentes. Verdade é a tecnologia avançada, é o índio Galdino queimado, a chacina selvagem, a injustiça escandalosa, a miséria deprimente. Não há como negar ou sonegar a verdade patente das realidades gritantes, sejam positivas ou negativas.
É salutar confrontar poder e verdade. Difundiu-se mentalidade neopragmatista que hipervaloriza o poder e deprecia a verdade. Para alguns setores, a verdade teria perdido sua autonomia, e não passaria de caudatária do poder. Basta acender o senso crítico para perceber a desenvoltura com que o poder distorce fatos, justifica procedimentos repugnantes e desconsidera a verdade cristalina. Há o poder “dono” da verdade. Sempre tem razão. Há o poder “medida” da verdade. Determina o que é e o que não é verdade. Há o poder “produtor” da verdade. Cria a verdade de acordo com seu gosto. E há o poder “infalível”. Nunca erra.
A lógica do poder entorta a lógica da verdade. Para alguns, quem está ao lado do poder está com a verdade. E quem discorda do poder está fora da verdade. Práticas escabrosas tornam-se verdade quando abonadas pelo poder. E verdades estridentes são descartadas quando contrariam interesses do poder. O poder procura calar a verdade que o incomoda. Quem destoa das autoridades é tido como subversivo e, por isso, deve ser enquadrado na disciplina e na ortodoxia. Pois o poder julga que existe para botar ordem na casa, no país e na igreja.
O poder é exercido como serviço à sociedade é um valor, é função útil na organização de atividades. Mas o poder que manipula a verdade é tirânico. A tirania hoje é mais “civilizada”. Age de forma incruenta, difusa, sigilosa. Mas muito eficiente.
A verdade é valor maior do que o poder. Há que lutar para que a verdade tenha prioridade em relação ao poder. Não é a verdade que deve estar a serviço do poder, mas é o poder que deve estar a serviço da verdade. O poder conta com a força. A verdade conta com a razão. Sem compromisso radical com a verdade, o poder adquire feição fascista, até em regimes chamados democráticos. O poder arbitrário é capaz de esmagar a verdade. Mas, mesmo esmagada, a verdade levanta a fronte ensangüentada e acusa seus detratores. Vale mais ficar com a verdade, sem prevalecer, do que prevalecer contra a verdade.
O trágico não é perder o poder. É perder a verdade. O poder da verdade deve falar mais alto do que a verdade do poder. Por isso, em muitas situações, a verdade terá de ser subversiva.
Quem cala consente?
A cultura é fenômeno ambivalente. Pode favorecer o ser humano ou prejudicá-lo, pode tecer a humanidade ou esfiapá-la, pode ser antropogenética ou antropofágica. É equívoco pensar que todo produto cultural seja avanço humanizante. Há cultura da liberdade e cultura da escravidão, cultura da justiça e cultura da miséria, cultura da paz e cultura armamentista, cultura igualitária e cultura racista, cultura emancipatória e cultura colonialista, cultura da vida e cultura da morte, cultura senhorial da Casa-Grande e cultura aviltada da Senzala.
As produções culturais possuem linguagem. Dizem significados dignificantes ou degradantes. Entre os produtos culturais há aforismos, ditados populares. “Quem cala consente” é provérbio muito citado e acatado. Consignado também em Sonetos  possíveis de Artur Azevedo.
“Quem cala consente” merece cuidadosa reflexão crítica. Há momentos em que calar é consentir. O silêncio pode ser consentimento livre. Mas nem sempre “quem cala consente”. Calar pode também significar recusa, oposição, protesto. O silêncio pode ser contestação muda. As pessoas podem calar-se porque estão sendo ameaçadas e reprimidas. Há vasto silêncio nos oprimidos. Escravos calam-se porque chicoteados pelos senhores, sociedades calam-se porque censuradas por ditaduras, estudantes calam-se porque receiam perseguição do professor, mulher estuprada cala-se para não ser humilhada, trabalhador cala-se por medo de ser dispensado, cristãos calam-se porque temem o “obsequioso silêncio”, pobres calam-se para que não lhes cortem as migalhas de sobrevivência na seca e na mendicância. Muitos calam-se porque não dispõem de espaço e meios para gritar seu direito.
Há milhões e milhões de seres humanos que se calam, mas “não consentem”. E são contabilizados como se apoiassem aquilo que são forçados a calar. E os setores dominantes proclamam cinicamente: “O povo está ao nosso lado”. É a lógica perversa e impositiva da sentença: “Quem cala consente”. É intolerável abuso cultural utilizar esse provérbio ambíguo para beneficiar golpistas. É a técnica maquiavélica que fatura prestigio em cima do silêncio de quem “não consente”.
Jean-François Lyotard diz que calar-se por decisão livre não é falha. Mas “impor silêncio ao outro” é introjetar-lhe o “terror íntimo”. O “quem cala consente” tem sido manipulado para domesticar a sociedade, para submeter divergentes e apagar o descontentamento popular. “Quem cala consente” é utilizado para projetar a imagem de que todos os calados, mesmo os discordantes, estão aceitando situações abomináveis.
É preciso denunciar essa pedagogia solerte. É indispensável questionar o “quem cala consente”, para não submeter a humanidade aos ditadores do mercado, aos controladores da informação, aos novos colonizadores da globalização pirata. “Quem cala consente” é linguagem cultural fomentada por setores interessados em perpetuar a tradição autoritária do poder, e em manter a população marginalizada e passiva. Chegou a hora de mostrar a outra banda da verdade. Chegou a hora de suscitar e disseminar a cultura de “quem cala não consente”. Para isso, é necessário aprender a linguagem calada daqueles que “não consentem”.
“Não me rendo”
Por essência, o ser humano possui potencial crítico, capacidade para avaliar fatos e liberdade para conduzir-se.
Nem sempre é esta a situação histórica vivida pela humanidade. Por causa de suas limitações, o ser humano está sujeito a muitas deformações. Freqüentemente, é transformado em adesivo social. É levado a repetir os outros, a proceder como os outros procedem.
Daí, por que é hodierna a peça O rinoceronte do genial dramaturgo Ionesco. Em 1960, Ionesco narra como surgiu O rinoceronte. O escritor Denis de Rougement estava na Alemanha e pôde testemunhar o delírio histérico com que a multidão aclamava Hitler em Nuremberg. Até Rougement começou a sentir-se contagiado pelo espetáculo passional. Mas conseguiu afastar-se daquele delírio coletivo.
O rinoceronte estigmatiza os totalitarismos, sobretudo o nazismo. Quando os alemães invadiram a França, na Segunda Guerra Mundial, Ionesco ficou chocado ao ver que setores franceses aderiam à ocupação alemã. Tentavam justificar-se: “Eles não atacam, não nos incomodam”. Foi esse contexto de subserviência que incitou Ionesco a escrever O rinoceronte.
O rinoceronte denuncia o fenômeno do adesismo contagiante. As pessoas perdem o senso crítico e a autonomia, e vão aderindo a sistemas totalitários, a culturas massificantes, ao poder, ao grupo hegemônico. É o triunfo da padronização social, sob forma irracional. Cada qual quer ser igual aos outros e tem medo de ser diferente.
De repente, um rinoceronte aparece nas ruas da cidade. Assustados, os moradores comentam o fato estranho. Dúvidas, opiniões divididas. Era um ser humano transmutado em “rinoceronte”, um quadrúpede pesado e bronco, que esmagava gatos com a pata e derrubava paredes e escadas com o focinho cornudo. O símbolo da “Besta”. E vão aparecendo muitos outros “rinocerontes”. Patrões, funcionários, o professor, o intelectual, a madame, o cardeal, as autoridades aderem ao rinocerontismo. “Um mar de rinocerontes.” Já são a maioria e detêm o poder. Todos querem tomar-se rinocerontes, porque temem ficar sozinhos.
Dudard justifica a mudança para rinoceronte: “Não se deve levar muito a sério os originais. A média é que conta”. Enquanto Bérenger ataca o rinocerontismo, Dudard defende-o: “O que há de mais natural que um rinoceronte?”, diz ele.
Quase todo o mundo virou rinoceronte. Sobraram Bérenger e sua amada Daisy. Mas Daisy começa a capitular: “Talvez os anormais sejamos nós”. Bérenger ainda resiste: “Não os seguirei”. Contudo, a pressão adesionista abala Bérenger: “Ficamos sozinhos”. E depois que Daisy o abandona para aderir aos rinocerontes, Bérenger arrepende-se de não haver feito o mesmo: “Como me arrependo... eu sou um monstro, tenho vergonha”. Nada mais trágico do que abdicar da personalidade para aderir. Para adotar a atitude dos outros. Mas, repentinamente, Bérenger recupera-se e grita: “Eu me defenderei contra o mundo. Sou o último homem. Não me rendo”.
Em época de tanto adesismo e de tanta rendição, resistir é questão de dignidade e de saúde ética. O homem brasileiro não pode perder sua originalidade para copiar os outros, não pode perder a autonomia para ser peça do mundo, não pode abandonar sua cultura para desnaturalizar-se com a cultura importada, não pode vender o caráter para aderir a procedimentos cínicos. No entanto, poderosos setores nacionais amoldaram-se fervorosamente ao “rinoceronte” da globalização neoliberal. Apesar de tudo, que o brasileiro seja núcleo humano original, crítico e insubmisso. Talvez “o último homem”. Mas adesismo não. Que o brasileiro tenha a coragem de sustentar a decisão ousada de Ionesco: “Não me rendo”.
Sublevação da consciência
Consciência é saber que se sabe. É auto-reconhecer-se. Há seres humanos que sabem que são seres humanos. E há os que não sabem explicitamente que são seres humanos. O que faz a diferença é a consciência. Sábia a reflexão de Sciacca: “Nada mais difícil para o homem do que viver sempre com a plena consciência de ser homem”.
Sem a consciência, os seres humanos se nivelam às coisas. São trocáveis, como objetos.
O ser humano tem consciência. E mais. É consciência. A consciência ausculta a pulsação da existência humana. E exige coragem para reconhecer-se com sinceridade. Consciência é ver-se por dentro. A consciência enxerga a totalidade do ser humano. Percebe as intenções ocultas, desnuda o pensamento sujo, desvenda a trama traiçoeira, vara a cerração do desconhecido, carrega segredos, documenta a verdade, maravilha-se com os valores pessoais e inconforma-se com cercos opressores. Para a consciência não há esconderijo. Nada consegue furtar-se a seu olhar vigilante. A consciência vê muito, mas não deve dizer tudo que sabe. Conversar com a consciência não só alegra, mas também amedronta. A consciência não só tranqüiliza e aprova, mas também assusta e condena. Ser aprovado pela consciência é bem-aventurança. Mas ser condenado pela consciência é tragédia. É pela consciência que o ser humano se define.
Há seres humanos exteriormente iluminados, mas interiormente são trevas porque a consciência está apagada. E há seres humanos enfurnados na escuridão externa, mas são luzeiros internos, porque a consciência permanece acesa. Há escravos e espoliados que percebem tudo o que se passa, porque a consciência lhes aponta os responsáveis pelas injustiças sofridas. São vítimas conscientes, embora nem sempre consigam desmascarar seus carrascos.
A consciência lúcida pode persistir mesmo quando a liberdade haja sido algemada pela prisão, pelo exílio, pela injustiça ou pela pressão estrangulante. Símbolo da consciência inextinguível foi Nelson Mandela. Atravessou anos na prisão, mas não se rendeu. Faltava-lhe a liberdade indispensável. Mas, ancorado na consciência indobrável, prevaleceu.
Na fase atual, a estratégia preferida é conseguir a adesão espontânea da consciência. Conquistar pacificamente a consciência da população é método eficaz para dominar a humanidade, sem derramar sangue. Mas é impossível dominar a consciência crítica, que não se deixa enganar. Nesse caso, recorre-se à repressão.
Daí, os mártires da consciência. São aqueles que mantêm a consciência acesa com destemor. São vidas que não perdem a dignidade de ser humano, porque não perdem a consciência. Quando se perde a consciência, começa-se a morrer. Sem a consciência, o homem não saberia por que vive. Nem saberia quem é.
É pela consciência que a pessoa se reconhece como ser humano. O perigo é que a sociedade não se reconheça como valor humano, por falta de consciência. No mundo atual, a consciência está sendo banalizada, esquecida, e até cancelada. E a supressão da consciência embrutece a sociedade. Para superar a desumanização da sociedade, há que reacender as consciências apagadas. E, sobretudo, promover a sublevação das consciências apáticas ou atemorizadas.
Pedra de Sísifo
Mito é forma de interpretar o mundo e a humanidade. O mito procura explicar a origem da vida e da morte, a luta entre o bem e o mal, vitórias e catástrofes.
O semiólogo Roland Barthes escreve: “Mito é uma fala. Essa fala é mensagem”. O mito comunica sentido que possibilita diversas aplicações. Mito é matriz de significados, possui mais conteúdo do que aparenta. Acumula herança cultural inconsciente. É arquétipo que ajuda a humanidade a descobrir-se e a explicar-se.
Sísifo é mito fértil. Foi fundador e rei de Corinto. Inteligente, sagaz, prevenido e criativo. Autólicos roubou-lhe os rebanhos e mudou-lhes a aparência para que não fossem reconhecidos. Mas Sísifo, que havia gravado seu nome no inferior do casco das reses, desmascarou o ladrão Autólicos e recuperou tranqüilamente seu rebanho.
Zeus, o deus maior, raptara Egina, filha de Ásopo. Sísifo surpreendeu Zeus com Egina, e avisou Ásopo. Zeus ordenou que Tânatos, deus da morte, matasse Sísifo. Usando astúcia, Sísifo acorrentou Tânatos. A partir daí, ninguém mais morria. Foi um transtorno. As funerárias fecharam as portas... Toda a “ordem” social mortífera entrou em crise. E, prefigurando o Estado que socorre bancos falidos, Zeus decidiu salvar a Morte. Determinou que Sísifo soltasse Tânatos. Em liberdade, Tânatos mata Sísifo, que, no inferno, foi condenado a rolar enorme pedra até o topo de uma colina. Do alto, a pedra despencava encosta abaixo. E Sísifo era obrigado a empurrá-la novamente para o cume. Seu destino era reproduzir esse ritual torturante, sem parar.
O mito de Sísifo revela muito do que acontece com a humanidade. De um lado, a humanidade é inteligente, inventiva, soluciona problemas, realiza conquistas científicas e tecnológicas. É capaz de preservar-se e superar-se. É tão sábia e engenhosa que consegue acorrentar a morte. E se Sísifo não aboliu a morte, pôde amarrá-la e adiá-la. É a humanidade que desata servidões para libertar-se.
De outro lado, Sísifo revela a humanidade vulnerável, quebradiça, sujeita a opressões. A pedra que castiga Sísifo martiriza também milhões de seres humanos. Vemos o povo prensado pela pedra da injustiça, esmagado pela pedra da dominação, torturado pela pedra da miséria. E, por toda parte, a humanidade de baixo suporta o peso da pedra da humanidade de cima.
Freqüentemente, o poder é aliado da morte. Zeus, o poder, soltou a morte para que matasse Sísifo e o condenasse ao sofrimento cruel. Também hoje, há governos e corporações econômicas que são aliados da morte. Protegem o grande capital e submetem a população à ruína, cortando-lhe recursos básicos indispensáveis à vida.
Sísifo alerta o ser humano para que não se deixe enganar por “Autólicos”. E encoraja a lutar, apesar do sofrimento. Sísifo foi punido atrozmente porque acorrentara Tânatos. Aprisionou a Morte e libertou a Vida. Lutou por causa justa. Também a humanidade pós-moderna há de acorrentar Tânatos, que está matando demais por meio da violência e da pobreza degradante. A sociedade deve promover a explosão da vida, e não da morte.
À semelhança de Sísifo, a humanidade tem sido condenada a rolar a pedra, encosta acima. Os braços suados de Sísifo conclamam a humanidade a alijar as pedras que lhe esfolam os ombros. O ser humano há de reerguer-se teimosamente, mesmo quando alguma pedra lhe recaia sobre a fronte machucada. Já é hora de a humanidade rebelar-se contra a pedra da submissão opressiva, contra a pedra tirânica dos poderosos, contra a pedra do sofrimento injusto, para emancipar-se radicalmente.
Pietà brasileira
Mulher-Mãe é polissêmica, porque expressa múltiplos significados. Fala de muitos modos. Fala pela alegria e pela melancolia, pela lágrima florida e pela lágrima sofrida. Mãe fala pela cantiga de ninar e pelo soluço de angústia. Fala por meio da ternura e do desatino, da paz e do pânico. Mulher-Mãe fala pelo trabalho e pela oração, pelo cansaço ao entardecer e pela vigília na madrugada. Fala pelas mansões requintadas e pelos barracos de plásticos. Fala pela cultura científica e pelas mãos calejadas de bóia-fria. Mãe fala pela mesa farta e pelos filhos desnutridos. Mãe fala ao embalar a criança aleitada e fala ao prantear a criança dizimada pela “morte severina”.
Fala a mãe atendida com solicitude e fala a mãe penalizada com carências básicas. Fala a mãe quando o filho é amparado pelo pai, e fala a mãe quando o filho é rejeitado pelo pai. Fala a mãe, mulher madura, pela gravidez desejada e amada. E fala a mãe menina, assustada com a gravidez precoce. Uma é a linguagem da mãe dignificada. Outra a linguagem da mãe humilhada. Falam as mães que festejam os filhos e têm motivos para agradecer a Deus. E falam as mães que sofrem filhos que perderam o sentido da existência. Mas sabem que filhos e mães são sempre amados por Deus.
As mães têm muito a dizer. É preciso ouvi-las. Sobretudo entender o significado que reponta de suas vidas. Falamos muito às mães. Falamos muito sobre as mães. E até falamos pelas mães. Mas ouvimos pouco as mães. No entanto, ninguém tem mais motivos para falar sobre as mães do que as próprias mães. As mães acumulam experiência biológica, psíquica, social, moral e espiritual.
Há mães que falam mais do que outras. Falam dramaticamente as mães pobres do sertão seco do Nordeste brasileiro. Mães descarnadas. Sangue minguado. Olhar tristonho, fincado na solidão. Mães sem resposta. Os filhos choram de fome. Não há leite, não há água nem folhagem. Nem grãos para enganar o estômago. Mãe desolada. No seu rosto macerado pelo sofrimento, escorre uma lágrima. Lágrima de fogo que lhe queima a alma. Todos já viram essa figura de mãe sertaneja, fisicamente frágil, mas de têmpera indobrável. Carrega “a estranha mania de ter fé na vida”. Ela é Pietà. É Mater dolorosa. É mãe sofredora. “Maria das Dores”, ou simplesmente “Dolores”. Essa mãe é a Pietà do sertão nordestino. A Pietà de Michelangelo marcou esteticamente Roma. A “Pietà sertaneja” está em Gravatá, em João Câmara, em Afogados da Ingazeira, em Quixeramobim. A Pietà, de vestido encardido e roto, pisa o sertão crestado. Pietà vara veredas com os pés descalços e lata d’água na cabeça. Pietà fala por meio de sua vida. É linguagem trágica. Pietà sertaneja estremece as consciências que ainda não se petrificaram. A Pietà sertaneja não pede consolo, mas justiça. Não pede esmola, mas quer respeito à dignidade de gente. Pietà sertaneja não mendiga compaixão, mas reclama direitos humanos. Não pede luxo, mas soluções para seus sofrimentos e humilhações. E solução há. Basta querer.
Pietà não é só sertaneja. É brasileira. Há Pietà nas favelas, nos ranchos, no trabalho escravo, no refúgio debaixo dos viadutos, na servidão feminina, nos nômades sem-teto e sem-terra. A linguagem da Pietà brasileira é clara, maltratada, interpelante. A sociedade brasileira insistirá em deixar Pietà sem resposta?
Insensibilidade
O teólogo e sociólogo Pablo Richard distingue “identidade antecedente” e “identidade conseqüente”. A identidade antecedente é a configuração pessoal adquirida pela experiência já vivida. E a identidade conseqüente é aquela que ainda poderá ser elaborada ao longo da existência. Por isso, a identidade pessoal é processo em permanente movimento. Dessa forma, o ser humano pode plenificar-se ou demolir-se, civilizar-se ou embrutecer-se. Pode cultivar valores éticos ou apodrecê-los. Cabe ao ser humano definir seu rumo, escolher caminhos, endireitar ou entortar a vida.
Essa ambigüidade ajuda-nos a entender por que temos humanidade que se aprimora e humanidade que se abastarda. Há seres humanos que são agentes antropogenéticos porque impulsionam a gênese ascensional da humanidade. E há seres humanos que são agentes antropofágicos porque dissolvem e devoram a humanidade. Muitos comprometem-se com a dignidade humana, e outros associam-se à criminalidade.
Essa realidade humana contraditória está sendo analisada por meio dos fenômenos de “Sensibilidade” e de “Crueldade”. Paul Ricoeur mostra a diferença entre conhecer e sentir. O conhecer é acentuadamente racional. E o sentir é acentuadamente afetivo, O sentir insere a pessoa no mundo, e interioriza o mundo na pessoa. Ao “sentir” um fenômeno, o ser humano é afetado em sua intimidade. Ricoeur diz que “sentir é inerência”. É o fenômeno de Aisthesis, que, no grego, significa “sentir”. Aisthesis é ser tocado, ser afetado por dentro. Aisthesis é também “Estética”, porque a arte afeta, comove, encanta, arrebata. A Estética é o universo do sentir. Lyotard diz: “O sentir está ligado ao sentimento estético”. A vida desperta quando é afetada por uma pessoa, arrebatada por paisagem ecológica, estimulada por fator psíquico e tocada pela arte.
Ao perder a sensibilidade, o ser humano torna-se “insensível”, embotado, estupidificado. A insensibilidade converte-se em “crueldade”. E então teremos Anaisthesia, que significa insensibilidade, anestesia, entorpecimento, grosseria, brutalidade. Pessoas insensíveis são impermeáveis. Nada consegue atingi-las. Os insensíveis adotam procedimentos bárbaros e não se deixam tocar pelos sofrimentos dos outros. Hoje está faltando Aisthesis, a sensibilidade humana. O neopragmatista Richard Rorty diz que “o progresso moral vem do incremento da sensibilidade”. Atualmente, a sensibilidade está sendo engolida pela insensibilidade. E o ser humano insensível é pernicioso porque perde a sensibilidade, mas não a inteligência. Usa a inteligência com a pedagogia da crueldade.
Em 1999, apareceu em São Paulo a “Milícia antimendigo”. É empresa terrorista com disfarce humanitário, que ganha dinheiro para expulsar mendigos e moradores de rua, estacionados em logradouros públicos. Escorraçar esses sofridos seres humanos é crueldade revoltante. A sociedade injusta produz párias sociais e depois os espanta e empurra para os lixões. A solução não é expulsar os pobres das ruas e praças, mas retirá-los da miséria hedionda. Aqueles que removem mendigos para “limpar” a cidade são agentes monstruosos. Pois esses pobres são vítimas de injustiças crônicas e da desigualdade perversa.
É necessário promover a justiça que garanta dignidade aos excluídos. E abrigar os empobrecidos, e não arrancá-los do resto de chão que lhes sobra. A sociedade brasileira, que ainda não perdeu a sensibilidade, há de insurgir-se para exigir respeito aos seres humanos submetidos à crueldade e à humilhação. É hora de empenhar efetiva solidariedade humana e cristã a homens e mulheres, a crianças e adultos, que são abandonados e maltratados pela insensibilidade social.
Axiologia crítica
É tempo de reavaliar a humanidade. Vivemos aceleração tecnológica. E haverá outros saltos evolutivos. Mas há também erosões humanas, crueldades, injustiças, aberrações econômicas, sociais e éticas.
Cada ser humano há que se perguntar para onde quer ir. Há que definir o futuro. Hora de autodestinação humana. A humanidade está sendo empurrada pelo poderio econômico, tecnológico e militar. Os centros condensadores do poder estão programando o rumo da humanidade de acordo com seus interesses. No entanto, a humanidade vale mais do que o poder acumulado. E tem o direito e o dever de repensar-se e conduzir-se.
Para isto, a humanidade necessita de critérios que a norteiem. Os parâmetros são os pólos de valor. A preocupação é definir que valores irão orientar a sociedade. Max Scheler foi o filósofo da “Axiologia”, ciência dos valores. Foi denominado “Gênio” vulcânico. O hermeneuta Gadamer realça a atualidade da contribuição original de Scheler.
Os falsos valores desfiam o tecido humano. Os antivalores devoram a humanidade. Constituem axiologia antropofágica. Violência, drogas, desigualdade e “totalitarismo econômico” desfibram a criatividade humana. E a humanidade carcomida será facilmente dobrada pelos dominadores do mundo. Há que eliminar os antivalores para que não destruam o potencial emancipatório da humanidade.
O uniformismo axiológico nivela os valores. A vida animal e a vida humana teriam o mesmo valor; a orquídea e a criança seriam equivalentes. É positivo reconhecer todos os valores, mas é funesto não reconhecer que há valores mais importantes do que outros. O nivelamento dos valores pode reduzir o ser humano a simples objeto.
A inversão axiológica alteia valores menores e rebaixa valores maiores. Essa posição pode ser utilizada para hipervalorizar a especulação financeira e descurar a dívida social que espolia e sufoca os brasileiros. A inversão axiológica patrocina a injustiça, e é responsável por práticas nocivas contra a humanidade. É discriminatória.
A legítima hierarquia axiológica estabelece prioridade entre os valores. Há valores que têm primazia porque possuem conteúdo e significado mais fecundos para a sociedade. O ser humano é o valor primacial na imanência do mundo. A justiça tem prioridade sobre a lei. O valor da vida humana tem primazia em relação aos recursos instrumentais, como o dinheiro. Não se trata de negar e excluir determinados valores, mas de situá-los segundo a escala da prioridade humanizante. Entende-se que preservar a vida humana fala mais alto do que desfiles de moda.
A criticidade axiológica é necessária para que a humanidade tenha consciência dos valores que a realizam e dos antivalores que a desrealizam. O sistema dominante oferta valores que são antivalores encapuçados. Exalta-se o humanismo, mas prostitui-se a humanidade. Fala-se em nome da humanidade para conquistar adesão popular e submeter a sociedade ao silêncio e à dependência. A axiologia crítica desmascara propostas que se apresentam como defensoras da humanidade, com o intuito de subordiná-la.
A humanidade que se reavalia à luz dos valores substanciais tem o futuro em suas mãos. Valor autêntico assume a causa da humanidade. E defende a existência humana com sangue. Humanidade não se perde com a morte. Perde-se quando se trai o sentido da vida. Mas há esperança. Enquanto existir ser humano consciente e responsável, que se comprometa com os grandes valores, haverá humanidade decente.
Liberdade e ética
  
Liberdade e ética, binômio fascinante. A mentalidade medíocre vê apenas uma face do ser humano. A mentalidade sábia vê o ser humano em todos os seus aspectos. A mediocridade é disjuntiva: liberdade ou ética, ética ou liberdade. A sabedoria é conjuntiva: liberdade com ética e ética com liberdade. A visão estreita fragmenta o ser humano. A visão ampla é arquitetônica. Engloba liberdade e ética.
Liberdade e ética possuem reciprocidade positiva. Intercomunicam-se e interfecundam-se. A liberdade acelera a ética e a ética tonifica a liberdade. Interligadas, estimulam a “mútua criação”.
A ética pressupõe a liberdade. A pedra, a planta, o animal e o homem coagido não exercem ato ético, porque não dispõem de liberdade. Onde falta a liberdade não há ética. Daí a importância da liberdade para a atividade ética. Por outra parte, sem ética, a liberdade pode adotar procedimentos tortuosos. A liberdade requisita referenciais éticos para mover-se com legitimidade. A ética oferece balizas aos passos livres. Valores éticos são flechas que apontam rumos à liberdade. A ética sinaliza trânsito aberto ou fechado para a arrancada da liberdade.
Liberdade e ética não são infalíveis. Podem tropeçar no percurso da vida. Estão sujeitas a falhas e a deformações. O eticismo é vazio de sentido. O autoritarismo ético veta inovações. A ética negativa proíbe iniciativas construtivas e condena atitudes lícitas. O fundamentalismo ético revela rigorismo patológico. Por outra parte, o libertarismo ilimita pretensões abusivas da liberdade. E não leva em conta a liberdade e os direitos dos outros. Também a liberdade pode ensandecer na irracionalidade.
A ética ditatorial avisa: “Aqui mando eu”. E a liberdade destemperada ameaça: “Sou livre e faço o que quero”. Ora, a ética tem a função de encaminhar a liberdade, e não de bloqueá-la arbitrariamente. E, por sua vez, a liberdade nem sempre pode justificar-se a si mesma, porque acerta, mas também desacerta. Não basta ser livre para ter o direito de fazer tudo o que é executável. Com liberdade fazem-se maravilhas, mas também faz-se o pior. Se bastasse ser livre para agir retamente, então matar com liberdade, estuprar com liberdade e rapinar dinheiro público com liberdade seriam procedimentos legítimos. Mas são execráveis. Apesar de livres, são totalmente imorais. Pico della Mirandola, protagonista do “humanismo orgulhoso”, confessa que se pode fazer “uso funesto da livre escolha”. Todo ser humano honesto reconhece que o direito à liberdade não sanciona ações criminosas praticadas livremente.
Sartre mostra que a liberdade é inerente ao ser humano. E, ao mesmo tempo, aponta o caráter ético da liberdade ao escrever que o “homem é livre porque, lançado no mundo, é responsável por tudo quanto fizer”. A liberdade possibilita a ética, e a ética salvaguarda a liberdade. Liberdade madura não dispensa a ética, e ética lúcida não amordaça a liberdade. O sujeito humano unifica, em si, liberdade e ética. Não se deve divorciá-las. Há que mantê-las organicamente articuladas.
Orientar eticamente a liberdade não é aprisioná-la, mas consolidá-la. O mundo atual pede mais liberdade e mais ética. Juntas contribuem para que a humanidade seja autônoma e justa. Sem liberdade, a humanidade é submetida à escravidão. E, sem ética, é submetida a crueldades repugnantes. Rousseau diz que “só a liberdade moral torna o homem senhor de si mesmo”. A humanidade, quanto mais livre, deve ser mais ética. E quanto mais ética, deve ser mais livre. E concretizemos, com o pensamento e as mãos, a utopia de uma nova humanidade livremente ética e eticamente livre.
Compromisso
Uma das características do ser humano é a capacidade de assumir compromissos. Comprometer-se é optar, é envolver-se, é responsabilizar-se. É empenhar-se radicalmente. Comprometer-se é arriscar-se. No compromisso, joga-se a própria vida.
O compromisso é ambivalente. Pode ser positivo ou negativo, benéfico ou maléfico. O ser humano pode comprometer-se com a defesa da vida ou com a destruição da vida, com a emancipação humana ou com a servidão social, com valores éticos ou com a criminalidade hedionda.
Muitos evitam o compromisso. Não querem comprometer-se para que não tenham de assumir as conseqüências de seus atos. Os neutralistas preferem a indiferença e a abstenção. Os vantagistas flutuam de acordo com a onda dos interesses mais suculentos. Os escorregadistas são evasivos e adaptam-se a qualquer situação. Os adesistas grudam-se ao poder dominante, abonam arbitrariedades e impunidades. Os covardistas praticam abusos sexuais e abusos político-econômicos, mas não os assumem.
Importa assumir o compromisso em sua legitimidade e profundidade. A medula do compromisso está na liberdade e responsabilidade. Comprometer-se é decisão pessoal. É assumir livremente causas, como ética, justiça, saúde, solidariedade, paz. Mas não basta optar livremente. O compromisso exige também responsabilidade. Liberdade e responsabilidade não são opostas nem excludentes. São aliadas. Reclamam-se mutuamente. A liberdade exige logicamente a responsabilidade. E a responsabilidade decorre logicamente da liberdade. O lúcido teólogo Xavier Thévenot diz que “a liberdade tem outro nome, que é a responsabilidade”. Para ele, a responsabilidade é a outra face da liberdade. Compromisso é articulação orgânica entre liberdade e responsabilidade. Por isso, compromisso é fenômeno de coerência. Separar a liberdade da responsabilidade é desarticular o compromisso. É anulá-lo.
Compromisso exige tenacidade. Precisa de continuidade. Comprometer-se hoje e descomprometer-se amanhã é veleidade. Por natureza, o compromisso tende a perdurar. Compromisso pode ser oneroso, mas é criador. Quem se compromete ama o que assume. Compromisso é participação, e não passividade. Compromisso busca o novo, algo que ainda não foi realizado. Carrega salto utópico. Quem se compromete com alguma coisa não pode lamentar-se o tempo todo. Compromisso pode ter sabor amargo, mas não pode ser detestado. Quem se compromete há de sentir alegria por haver assumido o risco. Arrepender-se de compromisso eticamente construtivo é traí-lo. Comprometer-se é abraçar prioridades. Assume-se compromisso porque se opta por um valor de grande significado. Consciência madura não irá comprometer-se com resíduos. Daí a razão por que o compromisso revela qual é a escala de valores adotada pelas pessoas.
Comprometer-se é definir-se. Pelo compromisso, a pessoa revela quem é, de que lado está, a quem apóia, a quem rejeita. O compromisso permite avaliar pessoas e posições. Desmente farsantes e desmonta tratantes. Desmascara aqueles que prometem prioridade para a justiça social, mas aparecem sempre acolitando banqueiros, megaempresários e chefes de nações poderosas.
Há espetáculo deprimente. Pessoas e grupos substituem o compromisso pelo cinismo. Escarnecem compromissos, tramam golpes e justificam a corrupção. Há que atalhar esse processo patológico. E assumir o compromisso ético com a vida humana, com a justiça, com a independência nacional, com a libertação dos que sofrem na miséria. Compromisso autêntico é optar resolutamente pela dignidade da sociedade e pela sociedade da dignidade.
Humanismo e técnica
A relação entre humanismo e técnica continua a ser questão candente. O humanismo preocupa-se com a dignidade pessoal, com os valores fundamentais da vida humana. A técnica comanda a vasta e complexa produção tecnológica. O humanismo pensa o significado e a primazia do ser humano. A técnica fabrica equipamentos cada vez mais sofisticados. O humanismo cultiva a consciência, a liberdade, o diálogo, a subjetividade. A técnica movimenta o universo mecânico, o sistema eletrônico. Humanismo é homo sapiens, técnica é homo faber.
Daí, surgem duas mentalidades. A mentalidade humanista e a mentalidade tecnológica, mentalidade personalista e mentalidade instrumental. Isso provoca dois tipos de opção. Optar pelo humanismo ou pela tecnologia. Quem opta pelo humanismo prioriza o ser humano e relativiza a tecnologia. Quem opta pela técnica prioriza a tecnologia e relega o ser humano. Essa concepção é disjuntiva porque separa e antagoniza humanismo e tecnologia. E, assim, os que abraçam o humanismo, amaldiçoam a técnica. E os que endeusam a tecnologia depreciam o humanismo.
Essa posição é simplista, acrítica e acanhada. Revela incapacidade para entender que há realidades distintas que não são opostas. Por natureza, humanismo e técnica são aliados, e não adversários. É equívoco considerar humanismo e técnica como mundos dissociados e hostis. Pois o mesmo ser humano é capaz de personalizar-se e de produzir tecnologia. Também a tecnologia é herança humanista, porque gerada pelo homem.
A Teoria Crítica da Escola de Frankfurt trouxe notável contribuição ao pensamento filosófico humanista. Foi celeiro de pensadores como L. Friedeburg, Tillich, Bloch, W. Benjamin, Marcuse, Horkheimer, Adorno e Habermas. Horkheimer e Adorno analisaram a razão instrumental, que produz ciência especializada e técnica. Impressionados como avanço da razão instrumental, verificaram que a ciência especializada impedia a compreensão integral do ser humano.
Mas Habermas soube ver a totalidade da razão humana. Reconhece que a razão humana tem função experimental e instrumental, que leva a produzir tecnologia. Mas teve o mérito de mostrar que, além de “instrumental”, a razão humana é também “comunicacional”, dialogal, intersubjetiva. Por isso, a razão instrumental pode produzir ciências especializadas e técnicas, mas a razão intersubjetiva pode gerar “reflexão emancipatória”, humanismo. Enquanto a razão funcional gera ciência experimental, a razão comunicacional gera ciências culturais e morais. A mesma razão humana, em níveis diferentes, produz ciência técnica e sabedoria humanista.
Nessa perspectiva, Todorov acentua a relação entre humanismo e técnica: “No cientismo utopista, os seres humanos, em vez de serem fins últimos, são transformados em meios. No cientismo técnico, os homens tornam-se instrumentos dos instrumentos, escravos de suas ferramentas... O humanismo não é contra a técnica como tal, mas é contra a técnica que deixa de ser meio para tornar-se fim”. O fim é o homem. Cabe à ética conferir sentido humanista à técnica.
O verdadeiro humanismo inclui a tecnologia como instrumento que pode beneficiar a humanidade. Em si mesma, a técnica não desumaniza o ser humano. A tecnologia que produz armas nucleares, químicas e biológicas, é engendrada por agentes humanos que perderam o senso de humanidade. Não é a tecnologia que degrada o ser humano. É o ser humano perverso que manipula criminosamente a tecnologia para mutilar e aniquilar vidas humanas. O desumanismo não é procriado intrinsecamente pela técnica. É produzido por pessoas e grupos que utilizam a técnica para comandar mecanicamente a sociedade e servilizar a humanidade. Ser humanista não significa condenar e excluir a tecnologia. A ética humanista orienta o dinamismo da técnica para a maturação das pessoas e para o crescimento igualitário dos povos.
Globalização
O fenômeno da “globalização” abriga diversos significados. E carrega ambigüidade a ser desfeita mediante avaliação crítica. Globalização expressa o sentido de universalidade. Fala-se também em mundialização e planetarização.
Globalização sugere processo orgânico que envolve a humanidade toda. É abertura para a terra habitada. A globalização pode ser cultural, política, econômica, social e religiosa. E pela desterritorialização, o centro do poder pode estar no país, sem ser do país.
A globalização neoliberal desenvolveu-se a partir de 1980. Acelerou conquistas tecnológicas, mas também estagnou povos. Uma revista alemã especializada sintetiza o perfil da atual globalização, nestes termos: “Produz onde os salários são mais baixos, pesquisa onde as leis são mais generosas e aufere lucros onde os impostos são menores”. Enquanto as transnacionais acumulam riquezas, populações pobres acumulam miséria.
A globalização transnacional estrutura conglomerados poderosos que comandam decisões mundiais e impõem normas rígidas aos governos nacionais. Octávio Ianni mostra que a globalização transforma “a soberania nacional em figura de retórica”. Chefes de Estado alardeiam independência, mas são executores da economia mundializada. As empresas transnacionais ditam regras aos países, exigem abertura de mercado e geram desemprego alarmante. E quem se insurge contra a “nova ordem mundial” é penalizado.
O progresso científico e tecnológico continua em ascensão também na era pós-moderna. E isso é avanço. Mas a globalização, que está sendo praticada, não realça a humanidade. Alastra, pelo mundo, sistema político-econômico nocivo. Segundo Stephen Mennell, o “campo magnético” dos mais fortes imanta a adesão dos mais fracos. E Norbert Elias salienta o “gancho” estrutural da minoria hegemônica que arrasta e domina a maioria dos países subalternos. A atual globalização fortalece corporações e debilita nações, concentra riquezas de um lado e pobreza de outro lado. Robert Kurz considera que a economia global não sobreviverá às “reações desesperadoras dos homens ‘cuspidos’ do mercado”. O conceituado sociólogo Alain Touraine diz que, ao globalizar-se, a economia divorciou-se da sociedade. E Michel Camdessus declarou, em setembro de 1999, que é necessário “humanizar a globalização”. Em outubro de 1999, John Williamson, autor do Consenso de Washington, referindo-se aos resultados perniciosos da globalização aplicada rigorosamente no Brasil, declara: “Bem, de fato isso é um nó. É muito ruim. E as conseqüências para o país podem ser muito infelizes”. Apesar de tudo, reconhecer a verdade é mais sensato do que escondê-la.
A globalização que circula com ar avassalador é despotismo da oligarquia transnacional. É globalização gigantesca pela voracidade lucrativa, mas tacanha em sua visão ântropo-histórica. Analistas internacionais apontam a atual globalização como totalitarismo econômico ou mercado totalitário. A globalização neoliberal é concretização do totalitarismo capitalista na era pós-moderna.
Daí por que se fala em novo imperialismo. Não o imperialismo do passado, movido por estados e nações, mas o imperialismo mundializado, regido por conglomerados privados transnacionalizados. A globalização vigente não é “pós-capitalista”. É hipercapitalista. Não veio para substituir o capitalismo, mas para impô-lo ao mundo todo. Em expressão condensada, Alex Fiúza de Mello escreve: “Aliás, nunca, como nos tempos do globalismo, houve tanto capitalismo”.’ A maturidade crítica rejeita a globalização, que força a humanidade a ajoelhar-se aos pés do ídolo econômico.
Globalizar a dignidade humana
A atual globalização neoliberal, predominantemente econômica, impõe à humanidade padronização rígida, que favorece os interesses de minorias poderosas e estrangula as necessidades das maiorias empobrecidas. Mas pode haver “globalização” que beneficie a humanidade em seu todo.
O lingüista crítico norte-americano Noam Chomsky, professor no Massachusetts Institute of Technology, define a globalização vigente como “mercantilismo das corporações”, onde decisões sobre relações sociais, econômicas e políticas são, cada vez mais, centradas em instituições privadas, sem nenhum mecanismo de controle social. Não se pode entregar o destino da humanidade ao “mercantilismo das corporações”, que reduz seres humanos a mercadorias. Importa contestar e afastar resolutamente a globalização que arruína milhões de vidas humanas.
Com razão, Robert Kurz sugere: “O que nos falta é a globalização de nova crítica social”. Pois a globalização integral deve abranger a humanidade toda, em seu volume demográfico, na diversidade de raças, culturas, políticas, economias e religiões. A verdadeira globalização defende e projeta a vida, a liberdade, a nacionalidade, a autonomia, as aspirações, os direitos fundamentais, a participação e a dignidade de todos os povos. Ninguém tem o direito de dominar ou excluir parte da humanidade para salvaguardar sistema comprovadamente desumano.
A genuína globalização garante espaço ao pensar alternativo e abre caminhos para soluções originais e até divergentes. A consciência da humanidade exige globalização pluralista que inclui pessoas, raças e nações diferenciadas, mas sem hostilidade. A globalização criadora fomenta o crescimento dos povos, sem sectarismo. E sabe reconhecer o valor humano e o pensamento especulativo no cientista e no “selvagem”, como o demonstra Claude Lévi-Strauss. A globalização autêntica é heterogênea e não se filia ao “pensamento único”. Associa unidade com diversidade. E mobiliza a interação entre “igualdade e diferença”, como diz Arjun Appadurai. Referindo-se à globalização dialogal, o dramaturgo Augusto Boal fala em “nova realidade onde se busca unificar a humanidade, mas não uniformizar os seres humanos”. Esse é o rumo.
A legítima globalização universaliza “a preocupação com a humanidade”, escreve Mike Featherstone. Contempla a totalidade dos 6 bilhões de habitantes no mundo. Buscamos a globalização que respeite o ser humano em qualquer parte do mundo, sem usá-lo como combustível nem descartá-lo como lixo. Buscamos a globalização que assegure vida, nutrição, trabalho, igualdade e autodesenvolvimento a todas as sociedades. Buscamos o olhar mundializado que mira o universo humano sem exclusões. “O sonho de um ecumenismo secular”, na feliz expressão de Friedrich Tenbruck. É urgente promover a globalização polifraterna que coloque a humanidade toda como prioridade em relação a valores subalternos.
A humanidade não pode capitular e submeter-se a um sistema desumanizante. Cabe-lhe reavaliar-se, definir seus passos e concretizar projeto de vida para todos. É preciso sustentar intransigentemente a primazia da espécie humana no mundo. E articular, em dimensão planetária, inteligências e ações para estruturar e disseminar a globalização politônica. O grande compromisso é globalizar a dignidade humana.
Desigualdade afrontosa
Há linguagem que lida com “diferença” e “desigualdade” como se fossem sinônimas. Mas seus significados no plano filosófico, antropológico e sociológico são distintos e inconfundíveis.
“Diferença” acentua o sentido de talento, de caráter, de valores originais de cada ser humano. Daí a diferença de cultura, raças, religiões, línguas e tradições. “Desigualdade” revela o sentido de distância entre os seres humanos. De um lado, os superiores; de outro lado, os inferiores. A diferença é salutar e a desigualdade é nociva. A diferença possibilita o entendimento, e a desigualdade bloqueia a compreensão.
A era em que vivemos exige que se analise, com rigor, a malignidade contida no fenômeno da desigualdade, em âmbito mundial e nacional. O Relatório “Erradicando a Pobreza Humana”, divulgado pela ONU, em 16 de outubro de 1998, revela que as 225 pessoas mais ricas do mundo possuem bens equivalentes ao que possuem 2,5 bilhões de seres humanos pobres na terra. Alan Greenspan, presidente do Banco Central dos Estados Unidos, cita dados “estarrecedores” apresentados por Ignácio Ramonet no jornal Le Monde Diplomatique, em novembro de 1998: as três pessoas mais ricas no planeta possuem fortuna superior à soma dos PIBs dos 48 países mais pobres do mundo. Esse quadro dramático perdura porque a pobreza e a desigualdade continuam em ascensão.
Em setembro de 2000, o Banco Mundial confirmou que os 20% mais ricos do mundo possuem 80% da riqueza mundial. E, em janeiro de 2001, o Financial Times informa que os 10% da população mais rica do mundo detêm 70% da renda total no planeta. James Wolfensohn, presidente do Banco Mundial, declara que o problema da América Latina não é de crescimento econômico, mas de distribuição do crescimento. Prometia-se, enfaticamente, que o crescimento econômico eliminaria a desigualdade nefasta. A professora Frances Stwart, de Oxford, mostra que os fatos estão desmentindo essa tese falaciosa. A desigualdade vem se agravando com o crescimento econômico e com a concentração de riquezas, na era da globalização. E Wolfensohn reconhece que a desigualdade entre ricos e pobres é ameaça que pode provocar “fratura social”.
O Brasil continua campeão de desigualdade no mundo. Segundo dados do IBGE, publicados em 2001, 1% da população mais rica detém 13,1% da renda nacional, e os 50% da população mais pobre detêm 14% da renda total. Assim, apenas um milhão e setecentos mil brasileiros possuem quase a mesma renda de oitenta e cinco milhões de brasileiros. Documentos do Banco Mundial, disponíveis no Encontro de Praga, em setembro de 2000, mostram que o Brasil mantém a maior desigualdade, excetuados os paupérrimos países de Serra Leoa e República Centro-Africana. O problema do Brasil não é tanto falta de riqueza, mas excesso de desigualdade. O país é potência econômica. Não é país pobre, mas país de pobres.
A classe dominante no Brasil impede qualquer tentativa de distribuição de renda. Quando se fala em distribuir migalhas de renda para suavizar a desigualdade, levanta-se resistência histérica e não se concede nada. Poderosos lobistas dominam o Congresso Nacional. E para consolidar as vantagens da desigualdade, a casta senhorial cancela até os magros direitos trabalhistas conquistados com sofrimento e sangue. A “Casa-Grande” gostaria que o trabalhador pagasse para trabalhar. Mas pagar com quê? Com a vida, é claro. Ou com a morte.
Fato paradigmático confirma a realidade. No ano 2000, p. ex., o salário mínimo foi fixado em 151 reais. Houve compreensível indignação. O ministro da Fazenda comparece em público para justificar o humilhante salário. E alegou que o salário mínimo era suficiente para adquirir a cesta básica, e ainda sobrariam 20 reais. Foi provocação repulsiva. Para o ministro, não vale a Constituição que, além da alimentação, inclui, no salário mínimo, “moradia, educação, saúde, vestuário, higiene, transporte, previdência social”. O ministro incentivou a descumprir a Constituição e ridicularizou 14 milhões de brasileiros que, segundo o IBGE, recebem salário mínimo. Já se sabia que, para ele, vale mais submeter-se às imposições do FMI do que solucionar as necessidades gritantes dos trabalhadores pobres.
A desigualdade é componente da estrutura socioeconômica brasileira. Não está aí por acaso nem por acidente de percurso. Não é fruto do destino. A desigualdade é sistema tramado por artífices humanos. É arquitetura social elaborada pela inteligência humana. É produto histórico de injustiças crônicas, perpetuadas por agentes pessoais e por organizações político-econômicas. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), publicado em setembro de 2000, revela que o pobre paga mais imposto do que o rico no Brasil. Isto “contribui para a manutenção de distribuição desigual de renda e dos níveis de pobreza”.
A desigualdade é gerada pelas injustiças. Para superar a nefasta desigualdade, é necessário erradicar a lógica da injustiça que biparte a sociedade em ricos e pobres. Essa injustiça não é “inocente”. Ela fortalece poderosos e empobrece os fracos. É preciso ter a coragem de reconhecer que há tácita e sólida aliança entre injustiça e detentores do poder econômico e político. Há injustiça lucrativa. Por esse motivo, dificilmente a desigualdade, gerada pela injustiça, será eliminada pelos que se beneficiam com ela. Usufrutuários da desigualdade podem até condená-la verbalmente, contanto que ela perdure e lhes renda dividendos. Daí a razão por que somente a rebelião do povo espoliado e consciente poderá estalar os redutos da injustiça e extirpar a desigualdade afrontosa.
Vertente da esperança         
O ser humano apresenta vertente retrospectiva e vertente prospectiva. A vertente retrospectiva conserva. Acumula experiências, saber e valores. Mantém o passado. É memória. A vertente prospectiva cresce. Avança, amadurece. É “tempo aberto”. Projeta-se no futuro. É o “ainda-não-realizado”. É esperança.
Esperança é aspirar. E buscar o que falta. É gerar o “novo”. É ter os olhos voltados para o futuro. Esperança é “sonho de quem está acordado”, diz Aristóteles. Para Kierkegaard, esperança “é paixão pelo possível”. Segundo Moltmann, a esperança orienta “para aquilo que ainda não tem lugar e que pode vir a tê-lo”. O filósofo Ernst Bloch escreve: “O importante é o olhar carregado de esperança, que é o olhar da função utópica”.
A esperança leva a querer algo mais. É “antecipação criadora”. A esperança tem rosto novo. É madrugada, e não crepúsculo. Jamais “envelhece”. Esperança é o mundo factível. Antecipa aquilo que ainda não é realidade. É o futuro que ainda pode ser convertido em história viva.
Esperança é pluridimensional. A esperança psicológica suscita aspirações, almeja mundo de justiça e paz. Sem esperança psicológica, a pessoa melancoliza-se e seca. A esperança ético-social deposita confiança nos outros. Apóia-se em pessoas e grupos. Segundo Sartre, o “desespero” é não poder contar com o outro. A esperança ético-social acredita na correspondência da intersubjetividade.
Esperança antropológica é o ser humano nômade. Desloca-se. Desdobra-se. Inventa-se. Deixa de ser o que era para chegar a ser o que ainda não é. A esperança abre espaço ao pensar, ao decidir, ao buscar, ao mudar. É gênese. O homem-esperança é o peregrino que caminha, é o artífice que tece o existir. Se não houvesse esperança, o homem seria tempo fechado. Estacionário. Sem esperança, não se vive, não se trabalha, não se inova.
Esperança é também fibra ontológica. A esperança ontológica embasa a esperança antropológica. Não basta ter esperança. É preciso ser esperança. O homem vive de esperança, acredita na esperança, mas sobretudo é esperança. Esperança é o salto do devir existencial.
Esperança é também práxis. Desencadeia o agir. Promove mudanças sociais, culturais e históricas. É energética que impulsiona a sociogênese. A esperança “é afeto militante”, escreve Bloch. É luta, e não repouso. Sem esperança, a humanidade perde a iniciativa. Embota-se.
O desespero “negativo” angustia e dilacera o ser humano. Retorce-lhe a vida e deixa-lhe as raízes desenterradas. Mas o desespero “positivo” é aliado da esperança. Pois desesperar da injustiça e da corrupção é construtivo. Desesperar da informação mistificante e das soluções ilusórias é maturidade. Desesperar da imoralidade é atitude ética. O desespero crítico é salutar. Não se deixa enganar.
Esperança autêntica é exigência criadora, e não consolo alienante. É equívoco pensar que a esperança existe para amortecer sofrimentos. Muitos sofrem carências e passam fome, mas consolam-se com a “esperança” de que um dia as coisas vão melhorar. Esse tipo de esperança anestesia as vítimas da injustiça. Há que passar da esperança conformista para a esperança sublevada.
A esperança é discreta, mas obstinada. É arroio. Filete de água que se avoluma e projeta arrojo criador. “A filosofia da esperança concentra-se na linha de frente no processo do mundo.” Esperança é vertente prospectiva que suscita passos para a gênese da nova humanidade.
   
Trechos do livro “ Antropologia: ousar para reinventar a humanidade” de Juvenal ARDUINI. Editora Paulus, São Paulo, 2004.

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