Ousar para reinventar a humanidade - II
Juvenal Arduini
Verdade subversiva
O poder, sob múltiplas
formas, deveria estar sempre a serviço dos grandes valores da humanidade. A
finalidade do poder é beneficiar a coletividade, e não a autoglorificação dos
dirigentes, O poder que não promove o crescimento da sociedade resvala em
absolutismo autocêntrico que menospreza as exigências da verdade.
Verdade não é apenas
um princípio abstrato. Verdade é a realidade existente, o fato concreto, o
conhecimento comprovado. A verdade desoculta o desconhecido, salienta a
dignidade da pessoa, reivindica liberdade e igualdade, sustenta o significado
ontológico da espécie humana, preserva os valores consistentes. Verdade é a
tecnologia avançada, é o índio Galdino queimado, a chacina selvagem, a injustiça
escandalosa, a miséria deprimente. Não há como negar ou sonegar a verdade
patente das realidades gritantes, sejam positivas ou negativas.
É salutar confrontar
poder e verdade. Difundiu-se mentalidade neopragmatista que hipervaloriza o
poder e deprecia a verdade. Para alguns setores, a verdade teria perdido sua
autonomia, e não passaria de caudatária do poder. Basta acender o senso crítico
para perceber a desenvoltura com que o poder distorce fatos, justifica
procedimentos repugnantes e desconsidera a verdade cristalina. Há o poder “dono”
da verdade. Sempre tem razão. Há o poder “medida” da verdade. Determina o que é
e o que não é verdade. Há o poder “produtor” da verdade. Cria a verdade de
acordo com seu gosto. E há o poder “infalível”. Nunca erra.
A lógica do poder
entorta a lógica da verdade. Para alguns, quem está ao lado do poder está com a
verdade. E quem discorda do poder está fora da verdade. Práticas escabrosas
tornam-se verdade quando abonadas pelo poder. E verdades estridentes são
descartadas quando contrariam interesses do poder. O poder procura calar a
verdade que o incomoda. Quem destoa das autoridades é tido como subversivo e,
por isso, deve ser enquadrado na disciplina e na ortodoxia. Pois o poder julga
que existe para botar ordem na casa, no país e na igreja.
O poder é exercido
como serviço à sociedade é um valor, é função útil na organização de atividades.
Mas o poder que manipula a verdade é tirânico. A tirania hoje é mais
“civilizada”. Age de forma incruenta, difusa, sigilosa. Mas muito eficiente.
A verdade é valor
maior do que o poder. Há que lutar para que a verdade tenha prioridade em
relação ao poder. Não é a verdade que deve estar a serviço do poder, mas é o
poder que deve estar a serviço da verdade. O poder conta com a força. A verdade
conta com a razão. Sem compromisso radical com a verdade, o poder adquire feição
fascista, até em regimes chamados democráticos. O poder arbitrário é capaz de
esmagar a verdade. Mas, mesmo esmagada, a verdade levanta a fronte ensangüentada
e acusa seus detratores. Vale mais ficar com a verdade, sem prevalecer, do que
prevalecer contra a verdade.
O trágico não é perder
o poder. É perder a verdade. O poder da verdade deve falar mais alto do que a
verdade do poder. Por isso, em muitas situações, a verdade terá de ser
subversiva.
Quem cala consente?
A cultura é fenômeno
ambivalente. Pode favorecer o ser humano ou prejudicá-lo, pode tecer a
humanidade ou esfiapá-la, pode ser antropogenética ou antropofágica. É equívoco
pensar que todo produto cultural seja avanço humanizante. Há cultura da
liberdade e cultura da escravidão, cultura da justiça e cultura da miséria,
cultura da paz e cultura armamentista, cultura igualitária e cultura racista,
cultura emancipatória e cultura colonialista, cultura da vida e cultura da
morte, cultura senhorial da Casa-Grande e cultura aviltada da Senzala.
As produções culturais
possuem linguagem. Dizem significados dignificantes ou degradantes. Entre os
produtos culturais há aforismos, ditados populares. “Quem cala consente” é
provérbio muito citado e acatado. Consignado também em Sonetos
possíveis de Artur Azevedo.
“Quem cala consente”
merece cuidadosa reflexão crítica. Há momentos em que calar é consentir. O
silêncio pode ser consentimento livre. Mas nem sempre “quem cala consente”.
Calar pode também significar recusa, oposição, protesto. O silêncio pode ser
contestação muda. As pessoas podem calar-se porque estão sendo ameaçadas e
reprimidas. Há vasto silêncio nos oprimidos. Escravos calam-se porque
chicoteados pelos senhores, sociedades calam-se porque censuradas por ditaduras,
estudantes calam-se porque receiam perseguição do professor, mulher estuprada
cala-se para não ser humilhada, trabalhador cala-se por medo de ser dispensado,
cristãos calam-se porque temem o “obsequioso silêncio”, pobres calam-se para que
não lhes cortem as migalhas de sobrevivência na seca e na mendicância. Muitos
calam-se porque não dispõem de espaço e meios para gritar seu direito.
Há milhões e milhões
de seres humanos que se calam, mas “não consentem”. E são contabilizados como se
apoiassem aquilo que são forçados a calar. E os setores dominantes proclamam
cinicamente: “O povo está ao nosso lado”. É a lógica perversa e impositiva da
sentença: “Quem cala consente”. É intolerável abuso cultural utilizar esse
provérbio ambíguo para beneficiar golpistas. É a técnica maquiavélica que fatura
prestigio em cima do silêncio de quem “não consente”.
Jean-François Lyotard
diz que calar-se por decisão livre não é falha. Mas “impor silêncio ao outro” é
introjetar-lhe o “terror íntimo”. O “quem cala consente” tem sido manipulado
para domesticar a sociedade, para submeter divergentes e apagar o
descontentamento popular. “Quem cala consente” é utilizado para projetar a
imagem de que todos os calados, mesmo os discordantes, estão aceitando situações
abomináveis.
É preciso denunciar
essa pedagogia solerte. É indispensável questionar o “quem cala consente”, para
não submeter a humanidade aos ditadores do mercado, aos controladores da
informação, aos novos colonizadores da globalização pirata. “Quem cala consente”
é linguagem cultural fomentada por setores interessados em perpetuar a tradição
autoritária do poder, e em manter a população marginalizada e passiva. Chegou a
hora de mostrar a outra banda da verdade. Chegou a hora de suscitar e disseminar
a cultura de “quem cala não consente”. Para isso, é necessário aprender a
linguagem calada daqueles que “não consentem”.
“Não me rendo”
Por essência, o ser
humano possui potencial crítico, capacidade para avaliar fatos e liberdade para
conduzir-se.
Nem sempre é esta a
situação histórica vivida pela humanidade. Por causa de suas limitações, o ser
humano está sujeito a muitas deformações. Freqüentemente, é transformado em
adesivo social. É levado a repetir os outros, a proceder como os outros
procedem.
Daí, por que é
hodierna a peça O rinoceronte do genial dramaturgo Ionesco. Em 1960,
Ionesco narra como surgiu O rinoceronte. O escritor Denis de Rougement
estava na Alemanha e pôde testemunhar o delírio histérico com que a multidão
aclamava Hitler em Nuremberg. Até Rougement começou a sentir-se contagiado pelo
espetáculo passional. Mas conseguiu afastar-se daquele delírio coletivo.
O rinoceronte
estigmatiza os totalitarismos, sobretudo o nazismo. Quando os alemães invadiram
a França, na Segunda Guerra Mundial, Ionesco ficou chocado ao ver que setores
franceses aderiam à ocupação alemã. Tentavam justificar-se: “Eles não atacam,
não nos incomodam”. Foi esse contexto de subserviência que incitou Ionesco a
escrever O rinoceronte.
O rinoceronte
denuncia o fenômeno do adesismo contagiante. As pessoas perdem o senso crítico e
a autonomia, e vão aderindo a sistemas totalitários, a culturas massificantes,
ao poder, ao grupo hegemônico. É o triunfo da padronização social, sob forma
irracional. Cada qual quer ser igual aos outros e tem medo de ser diferente.
De repente, um
rinoceronte aparece nas ruas da cidade. Assustados, os moradores comentam o fato
estranho. Dúvidas, opiniões divididas. Era um ser humano transmutado em
“rinoceronte”, um quadrúpede pesado e bronco, que esmagava gatos com a pata e
derrubava paredes e escadas com o focinho cornudo. O símbolo da “Besta”. E vão
aparecendo muitos outros “rinocerontes”. Patrões, funcionários, o professor, o
intelectual, a madame, o cardeal, as autoridades aderem ao rinocerontismo.
“Um mar de rinocerontes.” Já são a maioria e detêm o poder. Todos querem
tomar-se rinocerontes, porque temem ficar sozinhos.
Dudard justifica a
mudança para rinoceronte: “Não se deve levar muito a sério os originais. A média
é que conta”. Enquanto Bérenger ataca o rinocerontismo, Dudard defende-o:
“O que há de mais natural que um rinoceronte?”, diz ele.
Quase todo o mundo
virou rinoceronte. Sobraram Bérenger e sua amada Daisy. Mas Daisy começa a
capitular: “Talvez os anormais sejamos nós”. Bérenger ainda resiste: “Não os
seguirei”. Contudo, a pressão adesionista abala Bérenger: “Ficamos sozinhos”. E
depois que Daisy o abandona para aderir aos rinocerontes, Bérenger arrepende-se
de não haver feito o mesmo: “Como me arrependo... eu sou um monstro, tenho
vergonha”. Nada mais trágico do que abdicar da personalidade para aderir. Para
adotar a atitude dos outros. Mas, repentinamente, Bérenger recupera-se e grita:
“Eu me defenderei contra o mundo. Sou o último homem. Não me rendo”.
Em época de tanto
adesismo e de tanta rendição, resistir é questão de dignidade e de saúde ética.
O homem brasileiro não pode perder sua originalidade para copiar os outros, não
pode perder a autonomia para ser peça do mundo, não pode abandonar sua cultura
para desnaturalizar-se com a cultura importada, não pode vender o caráter para
aderir a procedimentos cínicos. No entanto, poderosos setores nacionais
amoldaram-se fervorosamente ao “rinoceronte” da globalização neoliberal. Apesar
de tudo, que o brasileiro seja núcleo humano original, crítico e insubmisso.
Talvez “o último homem”. Mas adesismo não. Que o brasileiro tenha a coragem de
sustentar a decisão ousada de Ionesco: “Não me rendo”.
Sublevação da consciência
Consciência é saber
que se sabe. É auto-reconhecer-se. Há seres humanos que sabem que são seres
humanos. E há os que não sabem explicitamente que são seres humanos. O que faz a
diferença é a consciência. Sábia a reflexão de Sciacca: “Nada mais difícil para
o homem do que viver sempre com a plena consciência de ser homem”.
Sem a consciência, os
seres humanos se nivelam às coisas. São trocáveis, como objetos.
O ser humano tem
consciência. E mais. É consciência. A consciência ausculta a pulsação da
existência humana. E exige coragem para reconhecer-se com sinceridade.
Consciência é ver-se por dentro. A consciência enxerga a totalidade do ser
humano. Percebe as intenções ocultas, desnuda o pensamento sujo, desvenda a
trama traiçoeira, vara a cerração do desconhecido, carrega segredos, documenta a
verdade, maravilha-se com os valores pessoais e inconforma-se com cercos
opressores. Para a consciência não há esconderijo. Nada consegue furtar-se a seu
olhar vigilante. A consciência vê muito, mas não deve dizer tudo que sabe.
Conversar com a consciência não só alegra, mas também amedronta. A consciência
não só tranqüiliza e aprova, mas também assusta e condena. Ser aprovado pela
consciência é bem-aventurança. Mas ser condenado pela consciência é tragédia. É
pela consciência que o ser humano se define.
Há seres humanos
exteriormente iluminados, mas interiormente são trevas porque a consciência está
apagada. E há seres humanos enfurnados na escuridão externa, mas são luzeiros
internos, porque a consciência permanece acesa. Há escravos e espoliados que
percebem tudo o que se passa, porque a consciência lhes aponta os responsáveis
pelas injustiças sofridas. São vítimas conscientes, embora nem sempre consigam
desmascarar seus carrascos.
A consciência lúcida
pode persistir mesmo quando a liberdade haja sido algemada pela prisão, pelo
exílio, pela injustiça ou pela pressão estrangulante. Símbolo da consciência
inextinguível foi Nelson Mandela. Atravessou anos na prisão, mas não se rendeu.
Faltava-lhe a liberdade indispensável. Mas, ancorado na consciência indobrável,
prevaleceu.
Na fase atual, a
estratégia preferida é conseguir a adesão espontânea da consciência. Conquistar
pacificamente a consciência da população é método eficaz para dominar a
humanidade, sem derramar sangue. Mas é impossível dominar a consciência crítica,
que não se deixa enganar. Nesse caso, recorre-se à repressão.
Daí, os mártires da
consciência. São aqueles que mantêm a consciência acesa com destemor. São vidas
que não perdem a dignidade de ser humano, porque não perdem a consciência.
Quando se perde a consciência, começa-se a morrer. Sem a consciência, o homem
não saberia por que vive. Nem saberia quem é.
É pela consciência que
a pessoa se reconhece como ser humano. O perigo é que a sociedade não se
reconheça como valor humano, por falta de consciência. No mundo atual, a
consciência está sendo banalizada, esquecida, e até cancelada. E a supressão da
consciência embrutece a sociedade. Para superar a desumanização da sociedade, há
que reacender as consciências apagadas. E, sobretudo, promover a sublevação das
consciências apáticas ou atemorizadas.
Pedra de Sísifo
Mito é forma de
interpretar o mundo e a humanidade. O mito procura explicar a origem da vida e
da morte, a luta entre o bem e o mal, vitórias e catástrofes.
O semiólogo Roland
Barthes escreve: “Mito é uma fala. Essa fala é mensagem”. O mito comunica
sentido que possibilita diversas aplicações. Mito é matriz de significados,
possui mais conteúdo do que aparenta. Acumula herança cultural inconsciente. É
arquétipo que ajuda a humanidade a descobrir-se e a explicar-se.
Sísifo
é mito
fértil. Foi fundador e rei de Corinto. Inteligente, sagaz, prevenido e criativo.
Autólicos roubou-lhe os rebanhos e mudou-lhes a aparência para que não
fossem reconhecidos. Mas Sísifo, que havia gravado seu nome no inferior
do casco das reses, desmascarou o ladrão Autólicos e recuperou
tranqüilamente seu rebanho.
Zeus,
o deus
maior, raptara Egina, filha de Ásopo. Sísifo surpreendeu Zeus
com Egina, e avisou Ásopo. Zeus ordenou que Tânatos,
deus da morte, matasse Sísifo. Usando astúcia, Sísifo acorrentou
Tânatos. A partir daí, ninguém mais morria. Foi um transtorno. As
funerárias fecharam as portas... Toda a “ordem” social mortífera entrou em
crise. E, prefigurando o Estado que socorre bancos falidos, Zeus decidiu salvar
a Morte. Determinou que Sísifo soltasse Tânatos. Em liberdade,
Tânatos mata Sísifo, que, no inferno, foi condenado a rolar enorme pedra
até o topo de uma colina. Do alto, a pedra despencava encosta abaixo. E
Sísifo era obrigado a empurrá-la novamente para o cume. Seu destino era
reproduzir esse ritual torturante, sem parar.
O mito de Sísifo
revela muito do que acontece com a humanidade. De um lado, a humanidade é
inteligente, inventiva, soluciona problemas, realiza conquistas científicas e
tecnológicas. É capaz de preservar-se e superar-se. É tão sábia e engenhosa que
consegue acorrentar a morte. E se Sísifo não aboliu a morte, pôde
amarrá-la e adiá-la. É a humanidade que desata servidões para libertar-se.
De outro lado,
Sísifo revela a humanidade vulnerável, quebradiça, sujeita a opressões. A
pedra que castiga Sísifo martiriza também milhões de seres humanos. Vemos
o povo prensado pela pedra da injustiça, esmagado pela pedra da dominação,
torturado pela pedra da miséria. E, por toda parte, a humanidade de baixo
suporta o peso da pedra da humanidade de cima.
Freqüentemente, o
poder é aliado da morte. Zeus, o poder, soltou a morte para que matasse
Sísifo e o condenasse ao sofrimento cruel. Também hoje, há governos e
corporações econômicas que são aliados da morte. Protegem o grande capital e
submetem a população à ruína, cortando-lhe recursos básicos indispensáveis à
vida.
Sísifo
alerta o
ser humano para que não se deixe enganar por “Autólicos”. E encoraja a
lutar, apesar do sofrimento. Sísifo foi punido atrozmente porque
acorrentara Tânatos. Aprisionou a Morte e libertou a Vida. Lutou por
causa justa. Também a humanidade pós-moderna há de acorrentar Tânatos,
que está matando demais por meio da violência e da pobreza degradante. A
sociedade deve promover a explosão da vida, e não da morte.
À semelhança de
Sísifo, a humanidade tem sido condenada a rolar a pedra, encosta acima. Os
braços suados de Sísifo conclamam a humanidade a alijar as pedras que lhe
esfolam os ombros. O ser humano há de reerguer-se teimosamente, mesmo quando
alguma pedra lhe recaia sobre a fronte machucada. Já é hora de a humanidade
rebelar-se contra a pedra da submissão opressiva, contra a pedra tirânica dos
poderosos, contra a pedra do sofrimento injusto, para emancipar-se radicalmente.
Pietà brasileira
Mulher-Mãe é
polissêmica, porque expressa múltiplos significados. Fala de muitos modos. Fala
pela alegria e pela melancolia, pela lágrima florida e pela lágrima sofrida. Mãe
fala pela cantiga de ninar e pelo soluço de angústia. Fala por meio da ternura e
do desatino, da paz e do pânico. Mulher-Mãe fala pelo trabalho e pela oração,
pelo cansaço ao entardecer e pela vigília na madrugada. Fala pelas mansões
requintadas e pelos barracos de plásticos. Fala pela cultura científica e pelas
mãos calejadas de bóia-fria. Mãe fala pela mesa farta e pelos filhos
desnutridos. Mãe fala ao embalar a criança aleitada e fala ao prantear a criança
dizimada pela “morte severina”.
Fala a mãe atendida
com solicitude e fala a mãe penalizada com carências básicas. Fala a mãe quando
o filho é amparado pelo pai, e fala a mãe quando o filho é rejeitado pelo pai.
Fala a mãe, mulher madura, pela gravidez desejada e amada. E fala a mãe menina,
assustada com a gravidez precoce. Uma é a linguagem da mãe dignificada. Outra a
linguagem da mãe humilhada. Falam as mães que festejam os filhos e têm motivos
para agradecer a Deus. E falam as mães que sofrem filhos que perderam o sentido
da existência. Mas sabem que filhos e mães são sempre amados por Deus.
As mães têm muito a
dizer. É preciso ouvi-las. Sobretudo entender o significado que reponta de suas
vidas. Falamos muito às mães. Falamos muito sobre as mães. E até falamos pelas
mães. Mas ouvimos pouco as mães. No entanto, ninguém tem mais motivos para falar
sobre as mães do que as próprias mães. As mães acumulam experiência biológica,
psíquica, social, moral e espiritual.
Há mães que falam mais
do que outras. Falam dramaticamente as mães pobres do sertão seco do Nordeste
brasileiro. Mães descarnadas. Sangue minguado. Olhar tristonho, fincado na
solidão. Mães sem resposta. Os filhos choram de fome. Não há leite, não há água
nem folhagem. Nem grãos para enganar o estômago. Mãe desolada. No seu rosto
macerado pelo sofrimento, escorre uma lágrima. Lágrima de fogo que lhe queima a
alma. Todos já viram essa figura de mãe sertaneja, fisicamente frágil, mas de
têmpera indobrável. Carrega “a estranha mania de ter fé na vida”. Ela é
Pietà. É Mater dolorosa. É mãe sofredora. “Maria das Dores”, ou
simplesmente “Dolores”. Essa mãe é a Pietà do sertão nordestino. A
Pietà de Michelangelo marcou esteticamente Roma. A “Pietà sertaneja” está em
Gravatá, em João Câmara, em Afogados da Ingazeira, em Quixeramobim. A Pietà,
de vestido encardido e roto, pisa o sertão crestado. Pietà vara
veredas com os pés descalços e lata d’água na cabeça. Pietà fala por meio
de sua vida. É linguagem trágica. Pietà sertaneja estremece as
consciências que ainda não se petrificaram. A Pietà sertaneja não pede
consolo, mas justiça. Não pede esmola, mas quer respeito à dignidade de gente.
Pietà sertaneja não mendiga compaixão, mas reclama direitos humanos. Não
pede luxo, mas soluções para seus sofrimentos e humilhações. E solução há. Basta
querer.
Pietà
não é só
sertaneja. É brasileira. Há Pietà nas favelas, nos ranchos, no trabalho
escravo, no refúgio debaixo dos viadutos, na servidão feminina, nos nômades
sem-teto e sem-terra. A linguagem da Pietà brasileira é clara,
maltratada, interpelante. A sociedade brasileira insistirá em deixar Pietà
sem resposta?
Insensibilidade
O teólogo e sociólogo
Pablo Richard distingue “identidade antecedente” e “identidade conseqüente”. A
identidade antecedente é a configuração pessoal adquirida pela experiência já
vivida. E a identidade conseqüente é aquela que ainda poderá ser elaborada ao
longo da existência. Por isso, a identidade pessoal é processo em permanente
movimento. Dessa forma, o ser humano pode plenificar-se ou demolir-se,
civilizar-se ou embrutecer-se. Pode cultivar valores éticos ou apodrecê-los.
Cabe ao ser humano definir seu rumo, escolher caminhos, endireitar ou entortar a
vida.
Essa ambigüidade
ajuda-nos a entender por que temos humanidade que se aprimora e humanidade que
se abastarda. Há seres humanos que são agentes antropogenéticos porque
impulsionam a gênese ascensional da humanidade. E há seres humanos que são
agentes antropofágicos porque dissolvem e devoram a humanidade. Muitos
comprometem-se com a dignidade humana, e outros associam-se à criminalidade.
Essa realidade humana
contraditória está sendo analisada por meio dos fenômenos de “Sensibilidade” e
de “Crueldade”. Paul Ricoeur mostra a diferença entre conhecer e sentir. O
conhecer é acentuadamente racional. E o sentir é acentuadamente afetivo, O
sentir insere a pessoa no mundo, e interioriza o mundo na pessoa. Ao “sentir” um
fenômeno, o ser humano é afetado em sua intimidade. Ricoeur diz que “sentir é
inerência”. É o fenômeno de Aisthesis, que, no grego, significa “sentir”.
Aisthesis é ser tocado, ser afetado por dentro. Aisthesis é também
“Estética”, porque a arte afeta, comove, encanta, arrebata. A Estética é o
universo do sentir. Lyotard diz: “O sentir está ligado ao sentimento estético”.
A vida desperta quando é afetada por uma pessoa, arrebatada por paisagem
ecológica, estimulada por fator psíquico e tocada pela arte.
Ao perder a
sensibilidade, o ser humano torna-se “insensível”, embotado, estupidificado. A
insensibilidade converte-se em “crueldade”. E então teremos Anaisthesia,
que significa insensibilidade, anestesia, entorpecimento, grosseria,
brutalidade. Pessoas insensíveis são impermeáveis. Nada consegue atingi-las. Os
insensíveis adotam procedimentos bárbaros e não se deixam tocar pelos
sofrimentos dos outros. Hoje está faltando Aisthesis, a sensibilidade
humana. O neopragmatista Richard Rorty diz que “o progresso moral vem do
incremento da sensibilidade”. Atualmente, a sensibilidade está sendo
engolida pela insensibilidade. E o ser humano insensível é pernicioso porque
perde a sensibilidade, mas não a inteligência. Usa a inteligência com a
pedagogia da crueldade.
Em 1999, apareceu em
São Paulo a “Milícia antimendigo”. É empresa terrorista com disfarce
humanitário, que ganha dinheiro para expulsar mendigos e moradores de rua,
estacionados em logradouros públicos. Escorraçar esses sofridos seres humanos é
crueldade revoltante. A sociedade injusta produz párias sociais e depois os
espanta e empurra para os lixões. A solução não é expulsar os pobres das ruas e
praças, mas retirá-los da miséria hedionda. Aqueles que removem mendigos para
“limpar” a cidade são agentes monstruosos. Pois esses pobres são vítimas de
injustiças crônicas e da desigualdade perversa.
É necessário promover
a justiça que garanta dignidade aos excluídos. E abrigar os empobrecidos, e não
arrancá-los do resto de chão que lhes sobra. A sociedade brasileira, que ainda
não perdeu a sensibilidade, há de insurgir-se para exigir respeito aos seres
humanos submetidos à crueldade e à humilhação. É hora de empenhar efetiva
solidariedade humana e cristã a homens e mulheres, a crianças e adultos, que são
abandonados e maltratados pela insensibilidade social.
Axiologia crítica
É tempo de reavaliar a
humanidade. Vivemos aceleração tecnológica. E haverá outros saltos evolutivos.
Mas há também erosões humanas, crueldades, injustiças, aberrações econômicas,
sociais e éticas.
Cada ser humano há que
se perguntar para onde quer ir. Há que definir o futuro. Hora de autodestinação
humana. A humanidade está sendo empurrada pelo poderio econômico, tecnológico e
militar. Os centros condensadores do poder estão programando o rumo da
humanidade de acordo com seus interesses. No entanto, a humanidade vale mais do
que o poder acumulado. E tem o direito e o dever de repensar-se e conduzir-se.
Para isto, a
humanidade necessita de critérios que a norteiem. Os parâmetros são os pólos de
valor. A preocupação é definir que valores irão orientar a sociedade. Max
Scheler foi o filósofo da “Axiologia”, ciência dos valores. Foi denominado
“Gênio” vulcânico. O hermeneuta Gadamer realça a atualidade da contribuição
original de Scheler.
Os falsos valores
desfiam o tecido humano. Os antivalores devoram a humanidade. Constituem
axiologia antropofágica. Violência, drogas, desigualdade e “totalitarismo
econômico” desfibram a criatividade humana. E a humanidade carcomida será
facilmente dobrada pelos dominadores do mundo. Há que eliminar os antivalores
para que não destruam o potencial emancipatório da humanidade.
O uniformismo
axiológico nivela os valores. A vida animal e a vida humana teriam o mesmo
valor; a orquídea e a criança seriam equivalentes. É positivo reconhecer todos
os valores, mas é funesto não reconhecer que há valores mais importantes do que
outros. O nivelamento dos valores pode reduzir o ser humano a simples objeto.
A inversão axiológica
alteia valores menores e rebaixa valores maiores. Essa posição pode ser
utilizada para hipervalorizar a especulação financeira e descurar a dívida
social que espolia e sufoca os brasileiros. A inversão axiológica patrocina a
injustiça, e é responsável por práticas nocivas contra a humanidade. É
discriminatória.
A legítima hierarquia
axiológica estabelece prioridade entre os valores. Há valores que têm primazia
porque possuem conteúdo e significado mais fecundos para a sociedade. O ser
humano é o valor primacial na imanência do mundo. A justiça tem prioridade sobre
a lei. O valor da vida humana tem primazia em relação aos recursos
instrumentais, como o dinheiro. Não se trata de negar e excluir determinados
valores, mas de situá-los segundo a escala da prioridade humanizante. Entende-se
que preservar a vida humana fala mais alto do que desfiles de moda.
A criticidade
axiológica é necessária para que a humanidade tenha consciência dos valores que
a realizam e dos antivalores que a desrealizam. O sistema dominante oferta
valores que são antivalores encapuçados. Exalta-se o humanismo, mas prostitui-se
a humanidade. Fala-se em nome da humanidade para conquistar adesão popular e
submeter a sociedade ao silêncio e à dependência. A axiologia crítica desmascara
propostas que se apresentam como defensoras da humanidade, com o intuito de
subordiná-la.
A humanidade que se
reavalia à luz dos valores substanciais tem o futuro em suas mãos. Valor
autêntico assume a causa da humanidade. E defende a existência humana com
sangue. Humanidade não se perde com a morte. Perde-se quando se trai o sentido
da vida. Mas há esperança. Enquanto existir ser humano consciente e responsável,
que se comprometa com os grandes valores, haverá humanidade decente.
Liberdade e ética
Liberdade e ética,
binômio fascinante. A mentalidade medíocre vê apenas uma face do ser humano. A
mentalidade sábia vê o ser humano em todos os seus aspectos. A mediocridade é
disjuntiva: liberdade ou ética, ética ou liberdade. A sabedoria é conjuntiva:
liberdade com ética e ética com liberdade. A visão estreita fragmenta o ser
humano. A visão ampla é arquitetônica. Engloba liberdade e ética.
Liberdade e ética
possuem reciprocidade positiva. Intercomunicam-se e interfecundam-se. A
liberdade acelera a ética e a ética tonifica a liberdade. Interligadas,
estimulam a “mútua criação”.
A ética pressupõe a
liberdade. A pedra, a planta, o animal e o homem coagido não exercem ato ético,
porque não dispõem de liberdade. Onde falta a liberdade não há ética. Daí a
importância da liberdade para a atividade ética. Por outra parte, sem ética, a
liberdade pode adotar procedimentos tortuosos. A liberdade requisita
referenciais éticos para mover-se com legitimidade. A ética oferece balizas aos
passos livres. Valores éticos são flechas que apontam rumos à liberdade. A ética
sinaliza trânsito aberto ou fechado para a arrancada da liberdade.
Liberdade e ética não
são infalíveis. Podem tropeçar no percurso da vida. Estão sujeitas a falhas e a
deformações. O eticismo é vazio de sentido. O autoritarismo ético veta
inovações. A ética negativa proíbe iniciativas construtivas e condena atitudes
lícitas. O fundamentalismo ético revela rigorismo patológico. Por outra parte, o
libertarismo ilimita pretensões abusivas da liberdade. E não leva em conta a
liberdade e os direitos dos outros. Também a liberdade pode ensandecer na
irracionalidade.
A ética ditatorial
avisa: “Aqui mando eu”. E a liberdade destemperada ameaça: “Sou livre e faço o
que quero”. Ora, a ética tem a função de encaminhar a liberdade, e não de
bloqueá-la arbitrariamente. E, por sua vez, a liberdade nem sempre pode
justificar-se a si mesma, porque acerta, mas também desacerta. Não basta ser
livre para ter o direito de fazer tudo o que é executável. Com liberdade
fazem-se maravilhas, mas também faz-se o pior. Se bastasse ser livre para agir
retamente, então matar com liberdade, estuprar com liberdade e rapinar dinheiro
público com liberdade seriam procedimentos legítimos. Mas são execráveis. Apesar
de livres, são totalmente imorais. Pico della Mirandola, protagonista do
“humanismo orgulhoso”, confessa que se pode fazer “uso funesto da livre
escolha”. Todo ser humano honesto reconhece que o direito à liberdade não
sanciona ações criminosas praticadas livremente.
Sartre mostra que a
liberdade é inerente ao ser humano. E, ao mesmo tempo, aponta o caráter ético da
liberdade ao escrever que o “homem é livre porque, lançado no mundo, é
responsável por tudo quanto fizer”. A liberdade possibilita a ética, e a ética
salvaguarda a liberdade. Liberdade madura não dispensa a ética, e ética lúcida
não amordaça a liberdade. O sujeito humano unifica, em si, liberdade e ética.
Não se deve divorciá-las. Há que mantê-las organicamente articuladas.
Orientar eticamente a
liberdade não é aprisioná-la, mas consolidá-la. O mundo atual pede mais
liberdade e mais ética. Juntas contribuem para que a humanidade seja autônoma e
justa. Sem liberdade, a humanidade é submetida à escravidão. E, sem ética, é
submetida a crueldades repugnantes. Rousseau diz que “só a liberdade moral torna
o homem senhor de si mesmo”. A humanidade, quanto mais livre, deve ser mais
ética. E quanto mais ética, deve ser mais livre. E concretizemos, com o
pensamento e as mãos, a utopia de uma nova humanidade livremente ética e
eticamente livre.
Compromisso
Uma das
características do ser humano é a capacidade de assumir compromissos.
Comprometer-se é optar, é envolver-se, é responsabilizar-se. É empenhar-se
radicalmente. Comprometer-se é arriscar-se. No compromisso, joga-se a própria
vida.
O compromisso é
ambivalente. Pode ser positivo ou negativo, benéfico ou maléfico. O ser humano
pode comprometer-se com a defesa da vida ou com a destruição da vida, com a
emancipação humana ou com a servidão social, com valores éticos ou com a
criminalidade hedionda.
Muitos evitam o
compromisso. Não querem comprometer-se para que não tenham de assumir as
conseqüências de seus atos. Os neutralistas preferem a indiferença e a
abstenção. Os vantagistas flutuam de acordo com a onda dos interesses mais
suculentos. Os escorregadistas são evasivos e adaptam-se a qualquer situação. Os
adesistas grudam-se ao poder dominante, abonam arbitrariedades e impunidades. Os
covardistas praticam abusos sexuais e abusos político-econômicos, mas não os
assumem.
Importa assumir o
compromisso em sua legitimidade e profundidade. A medula do compromisso está na
liberdade e responsabilidade. Comprometer-se é decisão pessoal. É assumir
livremente causas, como ética, justiça, saúde, solidariedade, paz. Mas não basta
optar livremente. O compromisso exige também responsabilidade. Liberdade e
responsabilidade não são opostas nem excludentes. São aliadas. Reclamam-se
mutuamente. A liberdade exige logicamente a responsabilidade. E a
responsabilidade decorre logicamente da liberdade. O lúcido teólogo Xavier
Thévenot diz que “a liberdade tem outro nome, que é a responsabilidade”. Para
ele, a responsabilidade é a outra face da liberdade. Compromisso é
articulação orgânica entre liberdade e responsabilidade. Por isso, compromisso é
fenômeno de coerência. Separar a liberdade da responsabilidade é desarticular o
compromisso. É anulá-lo.
Compromisso exige
tenacidade. Precisa de continuidade. Comprometer-se hoje e descomprometer-se
amanhã é veleidade. Por natureza, o compromisso tende a perdurar. Compromisso
pode ser oneroso, mas é criador. Quem se compromete ama o que assume.
Compromisso é participação, e não passividade. Compromisso busca o novo, algo
que ainda não foi realizado. Carrega salto utópico. Quem se compromete com
alguma coisa não pode lamentar-se o tempo todo. Compromisso pode ter sabor
amargo, mas não pode ser detestado. Quem se compromete há de sentir alegria por
haver assumido o risco. Arrepender-se de compromisso eticamente construtivo é
traí-lo. Comprometer-se é abraçar prioridades. Assume-se compromisso
porque se opta por um valor de grande significado. Consciência madura não irá
comprometer-se com resíduos. Daí a razão por que o compromisso revela qual é
a escala de valores adotada pelas pessoas.
Comprometer-se é
definir-se. Pelo compromisso, a pessoa revela quem é, de que lado está, a
quem apóia, a quem rejeita. O compromisso permite avaliar pessoas e posições.
Desmente farsantes e desmonta tratantes. Desmascara aqueles que prometem
prioridade para a justiça social, mas aparecem sempre acolitando banqueiros,
megaempresários e chefes de nações poderosas.
Há espetáculo
deprimente. Pessoas e grupos substituem o compromisso pelo cinismo. Escarnecem
compromissos, tramam golpes e justificam a corrupção. Há que atalhar esse
processo patológico. E assumir o compromisso ético com a vida humana, com a
justiça, com a independência nacional, com a libertação dos que sofrem na
miséria. Compromisso autêntico é optar resolutamente pela dignidade da sociedade
e pela sociedade da dignidade.
Humanismo e técnica
A relação entre
humanismo e técnica continua a ser questão candente. O humanismo preocupa-se com
a dignidade pessoal, com os valores fundamentais da vida humana. A técnica
comanda a vasta e complexa produção tecnológica. O humanismo pensa o significado
e a primazia do ser humano. A técnica fabrica equipamentos cada vez mais
sofisticados. O humanismo cultiva a consciência, a liberdade, o diálogo, a
subjetividade. A técnica movimenta o universo mecânico, o sistema eletrônico.
Humanismo é homo sapiens, técnica é homo faber.
Daí, surgem duas
mentalidades. A mentalidade humanista e a mentalidade tecnológica, mentalidade
personalista e mentalidade instrumental. Isso provoca dois tipos de opção. Optar
pelo humanismo ou pela tecnologia. Quem opta pelo humanismo prioriza o ser
humano e relativiza a tecnologia. Quem opta pela técnica prioriza a tecnologia e
relega o ser humano. Essa concepção é disjuntiva porque separa e
antagoniza humanismo e tecnologia. E, assim, os que abraçam o humanismo,
amaldiçoam a técnica. E os que endeusam a tecnologia depreciam o humanismo.
Essa posição é
simplista, acrítica e acanhada. Revela incapacidade para entender que há
realidades distintas que não são opostas. Por natureza, humanismo e técnica são
aliados, e não adversários. É equívoco considerar humanismo e técnica como
mundos dissociados e hostis. Pois o mesmo ser humano é capaz de personalizar-se
e de produzir tecnologia. Também a tecnologia é herança humanista, porque gerada
pelo homem.
A Teoria Crítica da
Escola de Frankfurt trouxe notável contribuição ao pensamento filosófico
humanista. Foi celeiro de pensadores como L. Friedeburg, Tillich, Bloch, W.
Benjamin, Marcuse, Horkheimer, Adorno e Habermas. Horkheimer e Adorno analisaram
a razão instrumental, que produz ciência especializada e técnica. Impressionados
como avanço da razão instrumental, verificaram que a ciência especializada
impedia a compreensão integral do ser humano.
Mas Habermas soube ver
a totalidade da razão humana. Reconhece que a razão humana tem função
experimental e instrumental, que leva a produzir tecnologia. Mas teve o mérito
de mostrar que, além de “instrumental”, a razão humana é também
“comunicacional”, dialogal, intersubjetiva. Por isso, a razão instrumental pode
produzir ciências especializadas e técnicas, mas a razão intersubjetiva pode
gerar “reflexão emancipatória”, humanismo. Enquanto a razão funcional gera
ciência experimental, a razão comunicacional gera ciências culturais e morais. A
mesma razão humana, em níveis diferentes, produz ciência técnica e sabedoria
humanista.
Nessa perspectiva,
Todorov acentua a relação entre humanismo e técnica: “No cientismo utopista, os
seres humanos, em vez de serem fins últimos, são transformados em meios. No
cientismo técnico, os homens tornam-se instrumentos dos instrumentos, escravos
de suas ferramentas... O humanismo não é contra a técnica como tal, mas é contra
a técnica que deixa de ser meio para tornar-se fim”. O fim é o homem. Cabe à
ética conferir sentido humanista à técnica.
O verdadeiro humanismo
inclui a tecnologia como instrumento que pode beneficiar a humanidade. Em si
mesma, a técnica não desumaniza o ser humano. A tecnologia que produz armas
nucleares, químicas e biológicas, é engendrada por agentes humanos que perderam
o senso de humanidade. Não é a tecnologia que degrada o ser humano. É o ser
humano perverso que manipula criminosamente a tecnologia para mutilar e
aniquilar vidas humanas. O desumanismo não é procriado intrinsecamente pela
técnica. É produzido por pessoas e grupos que utilizam a técnica para comandar
mecanicamente a sociedade e servilizar a humanidade. Ser humanista não significa
condenar e excluir a tecnologia. A ética humanista orienta o dinamismo da
técnica para a maturação das pessoas e para o crescimento igualitário dos povos.
Globalização
O fenômeno da
“globalização” abriga diversos significados. E carrega ambigüidade a ser
desfeita mediante avaliação crítica. Globalização expressa o sentido de
universalidade. Fala-se também em mundialização e planetarização.
Globalização sugere
processo orgânico que envolve a humanidade toda. É abertura para a terra
habitada. A globalização pode ser cultural, política, econômica, social e
religiosa. E pela desterritorialização, o centro do poder pode estar no
país, sem ser do país.
A globalização
neoliberal desenvolveu-se a partir de 1980. Acelerou conquistas tecnológicas,
mas também estagnou povos. Uma revista alemã especializada sintetiza o perfil da
atual globalização, nestes termos: “Produz onde os salários são mais baixos,
pesquisa onde as leis são mais generosas e aufere lucros onde os impostos são
menores”. Enquanto as transnacionais acumulam riquezas, populações pobres
acumulam miséria.
A globalização
transnacional estrutura conglomerados poderosos que comandam decisões mundiais e
impõem normas rígidas aos governos nacionais. Octávio Ianni mostra que a
globalização transforma “a soberania nacional em figura de retórica”. Chefes de
Estado alardeiam independência, mas são executores da economia mundializada. As
empresas transnacionais ditam regras aos países, exigem abertura de mercado e
geram desemprego alarmante. E quem se insurge contra a “nova ordem mundial” é
penalizado.
O progresso científico
e tecnológico continua em ascensão também na era pós-moderna. E isso é avanço.
Mas a globalização, que está sendo praticada, não realça a humanidade. Alastra,
pelo mundo, sistema político-econômico nocivo. Segundo Stephen Mennell, o “campo
magnético” dos mais fortes imanta a adesão dos mais fracos. E Norbert Elias
salienta o “gancho” estrutural da minoria hegemônica que arrasta e domina a
maioria dos países subalternos. A atual globalização fortalece corporações e
debilita nações, concentra riquezas de um lado e pobreza de outro lado. Robert
Kurz considera que a economia global não sobreviverá às “reações desesperadoras
dos homens ‘cuspidos’ do mercado”. O conceituado sociólogo Alain Touraine
diz que, ao globalizar-se, a economia divorciou-se da sociedade. E Michel
Camdessus declarou, em setembro de 1999, que é necessário “humanizar a
globalização”. Em outubro de 1999, John Williamson, autor do Consenso de
Washington, referindo-se aos resultados perniciosos da globalização aplicada
rigorosamente no Brasil, declara: “Bem, de fato isso é um nó. É muito ruim. E as
conseqüências para o país podem ser muito infelizes”. Apesar de tudo, reconhecer
a verdade é mais sensato do que escondê-la.
A globalização que
circula com ar avassalador é despotismo da oligarquia transnacional. É
globalização gigantesca pela voracidade lucrativa, mas tacanha em sua visão
ântropo-histórica. Analistas internacionais apontam a atual globalização como
totalitarismo econômico ou mercado totalitário. A globalização neoliberal é
concretização do totalitarismo capitalista na era pós-moderna.
Daí por que se fala em
novo imperialismo. Não o imperialismo do passado, movido por estados e nações,
mas o imperialismo mundializado, regido por conglomerados privados
transnacionalizados. A globalização vigente não é “pós-capitalista”. É
hipercapitalista. Não veio para substituir o capitalismo, mas para impô-lo ao
mundo todo. Em expressão condensada, Alex Fiúza de Mello escreve: “Aliás, nunca,
como nos tempos do globalismo, houve tanto capitalismo”.’ A maturidade crítica
rejeita a globalização, que força a humanidade a ajoelhar-se aos pés do ídolo
econômico.
Globalizar a dignidade humana
A atual globalização
neoliberal, predominantemente econômica, impõe à humanidade padronização rígida,
que favorece os interesses de minorias poderosas e estrangula as necessidades
das maiorias empobrecidas. Mas pode haver “globalização” que beneficie a
humanidade em seu todo.
O lingüista crítico
norte-americano Noam Chomsky, professor no Massachusetts Institute of
Technology, define a globalização vigente como “mercantilismo das corporações”,
onde decisões sobre relações sociais, econômicas e políticas são, cada vez mais,
centradas em instituições privadas, sem nenhum mecanismo de controle social. Não
se pode entregar o destino da humanidade ao “mercantilismo das corporações”, que
reduz seres humanos a mercadorias. Importa contestar e afastar resolutamente a
globalização que arruína milhões de vidas humanas.
Com razão, Robert Kurz
sugere: “O que nos falta é a globalização de nova crítica social”. Pois a
globalização integral deve abranger a humanidade toda, em seu volume
demográfico, na diversidade de raças, culturas, políticas, economias e
religiões. A verdadeira globalização defende e projeta a vida, a liberdade, a
nacionalidade, a autonomia, as aspirações, os direitos fundamentais, a
participação e a dignidade de todos os povos. Ninguém tem o direito de dominar
ou excluir parte da humanidade para salvaguardar sistema comprovadamente
desumano.
A genuína globalização
garante espaço ao pensar alternativo e abre caminhos para soluções originais e
até divergentes. A consciência da humanidade exige globalização pluralista que
inclui pessoas, raças e nações diferenciadas, mas sem hostilidade. A
globalização criadora fomenta o crescimento dos povos, sem sectarismo. E sabe
reconhecer o valor humano e o pensamento especulativo no cientista e no
“selvagem”, como o demonstra Claude Lévi-Strauss. A globalização autêntica é
heterogênea e não se filia ao “pensamento único”. Associa unidade com
diversidade. E mobiliza a interação entre “igualdade e diferença”, como diz
Arjun Appadurai. Referindo-se à globalização dialogal, o dramaturgo Augusto Boal
fala em “nova realidade onde se busca unificar a humanidade, mas não uniformizar
os seres humanos”. Esse é o rumo.
A legítima
globalização universaliza “a preocupação com a humanidade”, escreve Mike
Featherstone. Contempla a totalidade dos 6 bilhões de habitantes no mundo.
Buscamos a globalização que respeite o ser humano em qualquer parte do mundo,
sem usá-lo como combustível nem descartá-lo como lixo. Buscamos a globalização
que assegure vida, nutrição, trabalho, igualdade e autodesenvolvimento a todas
as sociedades. Buscamos o olhar mundializado que mira o universo humano sem
exclusões. “O sonho de um ecumenismo secular”, na feliz expressão de Friedrich
Tenbruck. É urgente promover a globalização polifraterna que coloque a
humanidade toda como prioridade em relação a valores subalternos.
A humanidade não pode
capitular e submeter-se a um sistema desumanizante. Cabe-lhe reavaliar-se,
definir seus passos e concretizar projeto de vida para todos. É preciso
sustentar intransigentemente a primazia da espécie humana no mundo. E articular,
em dimensão planetária, inteligências e ações para estruturar e disseminar a
globalização politônica. O grande compromisso é globalizar a dignidade
humana.
Desigualdade afrontosa
Há linguagem que lida
com “diferença” e “desigualdade” como se fossem sinônimas. Mas seus significados
no plano filosófico, antropológico e sociológico são distintos e inconfundíveis.
“Diferença” acentua o
sentido de talento, de caráter, de valores originais de cada ser humano. Daí a
diferença de cultura, raças, religiões, línguas e tradições. “Desigualdade”
revela o sentido de distância entre os seres humanos. De um lado, os superiores;
de outro lado, os inferiores. A diferença é salutar e a desigualdade é nociva. A
diferença possibilita o entendimento, e a desigualdade bloqueia a compreensão.
A era em que vivemos
exige que se analise, com rigor, a malignidade contida no fenômeno da
desigualdade, em âmbito mundial e nacional. O Relatório “Erradicando a Pobreza
Humana”, divulgado pela ONU, em 16 de outubro de 1998, revela que as 225 pessoas
mais ricas do mundo possuem bens equivalentes ao que possuem 2,5 bilhões de
seres humanos pobres na terra. Alan Greenspan, presidente do Banco Central dos
Estados Unidos, cita dados “estarrecedores” apresentados por Ignácio Ramonet no
jornal Le Monde Diplomatique, em novembro de 1998: as três pessoas mais
ricas no planeta possuem fortuna superior à soma dos PIBs dos 48 países
mais pobres do mundo. Esse quadro dramático perdura porque a pobreza e a
desigualdade continuam em ascensão.
Em setembro de 2000, o
Banco Mundial confirmou que os 20% mais ricos do mundo possuem 80% da riqueza
mundial. E, em janeiro de 2001, o Financial Times informa que os 10% da
população mais rica do mundo detêm 70% da renda total no planeta. James
Wolfensohn, presidente do Banco Mundial, declara que o problema da América
Latina não é de crescimento econômico, mas de distribuição do crescimento.
Prometia-se, enfaticamente, que o crescimento econômico eliminaria a
desigualdade nefasta. A professora Frances Stwart, de Oxford, mostra que os
fatos estão desmentindo essa tese falaciosa. A desigualdade vem se
agravando com o crescimento econômico e com a concentração de riquezas, na era
da globalização. E Wolfensohn reconhece que a desigualdade entre ricos e pobres
é ameaça que pode provocar “fratura social”.
O Brasil continua
campeão de desigualdade no mundo. Segundo dados do IBGE, publicados em 2001, 1%
da população mais rica detém 13,1% da renda nacional, e os 50% da população mais
pobre detêm 14% da renda total. Assim, apenas um milhão e setecentos mil
brasileiros possuem quase a mesma renda de oitenta e cinco milhões de
brasileiros. Documentos do Banco Mundial, disponíveis no Encontro de Praga, em
setembro de 2000, mostram que o Brasil mantém a maior desigualdade, excetuados
os paupérrimos países de Serra Leoa e República Centro-Africana. O problema do
Brasil não é tanto falta de riqueza, mas excesso de desigualdade. O país
é potência econômica. Não é país pobre, mas país de pobres.
A classe dominante no
Brasil impede qualquer tentativa de distribuição de renda. Quando se fala em
distribuir migalhas de renda para suavizar a desigualdade, levanta-se
resistência histérica e não se concede nada. Poderosos lobistas dominam o
Congresso Nacional. E para consolidar as vantagens da desigualdade, a casta
senhorial cancela até os magros direitos trabalhistas conquistados com
sofrimento e sangue. A “Casa-Grande” gostaria que o trabalhador pagasse para
trabalhar. Mas pagar com quê? Com a vida, é claro. Ou com a morte.
Fato paradigmático
confirma a realidade. No ano 2000, p. ex., o salário mínimo foi fixado em 151
reais. Houve compreensível indignação. O ministro da Fazenda comparece em
público para justificar o humilhante salário. E alegou que o salário mínimo era
suficiente para adquirir a cesta básica, e ainda sobrariam 20 reais. Foi
provocação repulsiva. Para o ministro, não vale a Constituição que, além da
alimentação, inclui, no salário mínimo, “moradia, educação, saúde, vestuário,
higiene, transporte, previdência social”. O ministro incentivou a descumprir a
Constituição e ridicularizou 14 milhões de brasileiros que, segundo o IBGE,
recebem salário mínimo. Já se sabia que, para ele, vale mais submeter-se às
imposições do FMI do que solucionar as necessidades gritantes dos trabalhadores
pobres.
A desigualdade é
componente da estrutura socioeconômica brasileira. Não está aí por acaso nem por
acidente de percurso. Não é fruto do destino. A desigualdade é sistema tramado
por artífices humanos. É arquitetura social elaborada pela inteligência humana.
É produto histórico de injustiças crônicas, perpetuadas por agentes pessoais e
por organizações político-econômicas. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA), publicado em setembro de 2000, revela que o pobre paga mais
imposto do que o rico no Brasil. Isto “contribui para a manutenção de
distribuição desigual de renda e dos níveis de pobreza”.
A desigualdade é
gerada pelas injustiças. Para superar a nefasta desigualdade, é necessário
erradicar a lógica da injustiça que biparte a sociedade em ricos e pobres. Essa
injustiça não é “inocente”. Ela fortalece poderosos e empobrece os fracos. É
preciso ter a coragem de reconhecer que há tácita e sólida aliança entre
injustiça e detentores do poder econômico e político. Há injustiça lucrativa.
Por esse motivo, dificilmente a desigualdade, gerada pela injustiça, será
eliminada pelos que se beneficiam com ela. Usufrutuários da desigualdade podem
até condená-la verbalmente, contanto que ela perdure e lhes renda dividendos.
Daí a razão por que somente a rebelião do povo espoliado e consciente poderá
estalar os redutos da injustiça e extirpar a desigualdade afrontosa.
Vertente da esperança
O ser humano apresenta
vertente retrospectiva e vertente prospectiva. A vertente retrospectiva
conserva. Acumula experiências, saber e valores. Mantém o passado. É memória. A
vertente prospectiva cresce. Avança, amadurece. É “tempo aberto”. Projeta-se no
futuro. É o “ainda-não-realizado”. É esperança.
Esperança é aspirar. E
buscar o que falta. É gerar o “novo”. É ter os olhos voltados para o futuro.
Esperança é “sonho de quem está acordado”, diz Aristóteles. Para Kierkegaard,
esperança “é paixão pelo possível”. Segundo Moltmann, a esperança orienta “para
aquilo que ainda não tem lugar e que pode vir a tê-lo”. O filósofo
Ernst Bloch escreve: “O importante é o olhar carregado de esperança, que é o
olhar da função utópica”.
A esperança leva a
querer algo mais. É “antecipação criadora”. A esperança tem rosto novo. É
madrugada, e não crepúsculo. Jamais “envelhece”. Esperança é o mundo factível.
Antecipa aquilo que ainda não é realidade. É o futuro que ainda pode ser
convertido em história viva.
Esperança é
pluridimensional. A esperança psicológica suscita aspirações, almeja mundo de
justiça e paz. Sem esperança psicológica, a pessoa melancoliza-se e seca. A
esperança ético-social deposita confiança nos outros. Apóia-se em pessoas e
grupos. Segundo Sartre, o “desespero” é não poder contar com o outro. A
esperança ético-social acredita na correspondência da intersubjetividade.
Esperança
antropológica é o ser humano nômade. Desloca-se. Desdobra-se. Inventa-se. Deixa
de ser o que era para chegar a ser o que ainda não é. A esperança abre espaço ao
pensar, ao decidir, ao buscar, ao mudar. É gênese. O homem-esperança é o
peregrino que caminha, é o artífice que tece o existir. Se não houvesse
esperança, o homem seria tempo fechado. Estacionário. Sem esperança, não se
vive, não se trabalha, não se inova.
Esperança é também
fibra ontológica. A esperança ontológica embasa a esperança antropológica. Não
basta ter esperança. É preciso ser esperança. O homem vive de
esperança, acredita na esperança, mas sobretudo é esperança.
Esperança é o salto do devir existencial.
Esperança é também
práxis. Desencadeia o agir. Promove mudanças sociais, culturais e históricas. É
energética que impulsiona a sociogênese. A esperança “é afeto militante”,
escreve Bloch. É luta, e não repouso. Sem esperança, a humanidade perde a
iniciativa. Embota-se.
O desespero “negativo”
angustia e dilacera o ser humano. Retorce-lhe a vida e deixa-lhe as raízes
desenterradas. Mas o desespero “positivo” é aliado da esperança. Pois desesperar
da injustiça e da corrupção é construtivo. Desesperar da informação mistificante
e das soluções ilusórias é maturidade. Desesperar da imoralidade é atitude
ética. O desespero crítico é salutar. Não se deixa enganar.
Esperança autêntica é
exigência criadora, e não consolo alienante. É equívoco pensar que a esperança
existe para amortecer sofrimentos. Muitos sofrem carências e passam fome, mas
consolam-se com a “esperança” de que um dia as coisas vão melhorar. Esse tipo de
esperança anestesia as vítimas da injustiça. Há que passar da esperança
conformista para a esperança sublevada.
A esperança é
discreta, mas obstinada. É arroio. Filete de água que se avoluma e projeta
arrojo criador. “A filosofia da esperança concentra-se na linha de frente no
processo do mundo.” Esperança é vertente prospectiva que suscita
passos para a gênese da nova humanidade.
Trechos do livro “
Antropologia: ousar para reinventar a humanidade” de Juvenal ARDUINI.
Editora Paulus, São Paulo, 2004.
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