Por Hermes C. Fernandes
As siglas S.O.P.A e P.I.P.A. têm
dado muito o que falar entre os internautas brasileiros nos últimos
dias. Apesar de tratar-se de projetos leis americanos, sabemos que geralmente o que se faz por lá, acaba
afetando o resto do mundo.
O Stop Online Piracy Act (SOPA,
da sigla em inglês) propõe significativas alterações na forma de
combate a pirataria no ambiente da internet. O projeto de lei
permitiria ao Departamento de Justiça dos EUA investigar, perseguir
e desconectar qualquer pessoa ou empresa acusada de disponibilizar na
rede sem permissão material sujeito a direitos autorais dentro e
fora do país afetando inclusive empresas brasileiras. A lei também
obrigaria aos sites de busca, provedores de domínios e empresas de
publicidade americanas a bloquear os serviços de qualquer site que
esteja sob investigação do Departamento de Justiça por ter
publicado material violando os direitos de propriedade intelectual.
Já o PIPA (Protect
Intellectual Property Act), propõem penas de até cinco anos
de cadeia para pessoas condenadas por compartilhar material pirateado
10 ou mais vezes ao longo de seis meses. Suas propostas também
preveem punições para sites acusados de “permitir ou facilitar”
a pirataria. Em tese, um site pode ser fechado apenas por manter
laços com algum outro site suspeito de pirataria.
Não deve demorar muito para que o congresso brasileiro
siga os mesmos passos do americano, tentar impor aos nossos internautas uma
espécie de censura, semelhante à aplicada na China, Irã e Síria. A
diferença está na justificativa usada: impedir a pirataria on-line.
Ou seja: combater práticas sociais historicamente usadas pelas
pessoas para acessar a qualquer obra cultural, como intercambiar,
compartilhar, emprestar, etc., mesmo antes que a internet fosse inventada.
Na última semana (19/01), o
governo dos Estados Unidos fechou o site de compartilhamento de
arquivos MegaUpload, acusando o serviço de facilitar a troca de
conteúdo protegido por direitos autorais e prendendo seus fundadores
e funcionários por incentivar a pirataria.
Em represália ao fechamento do
serviço, e também como forma de protesto ao SOPA e ao PIPA, o grupo
hacker conhecido como Anonymous promoveu a sua maior ação. Em poucas
horas, conseguiram derrubar os sites da RIAA (Record Industry
Association of America),
da MPAA (Motion Picture Association of America), da Universal Music
(responsável pela acusação de pirataria do Megaupload), do
Departamento de Justiça dos Estados Unidos, do US Copyright Office,
da Warner Music Group e até mesmo o do FBI.
Com a retirada do Megaupload,
milhões de pessoas que usavam o site para armazenar seus arquivos
foram prejudicadas. Eu mesmo fui prejudicado, pois mantinha mais de uma
centena de arquivos em vídeos de mensagens pregadas em congressos,
convenções e outros eventos.
Também na última semana
(17/01), a Wikipédia saiu do ar, cumprindo a promessa feita no dia
anterior, quando anunciou um “apagão” de 24 horas para protestar
contra as leis antipirataria que tramitam no Congresso dos Estados
Unidos.
O texto na capa do site diz o
seguinte:
Imagine um mundo sem conhecimento livre. Por mais de uma década, gastamos milhões de horas construindo a maior enciclopédia da história da humanidade. Neste momento, o Congresso dos Estados Unidos está debatendo uma legislação que poderia prejudicar fatalmente a internet livre e aberta. Por 24 horas, para chamar a atenção sobre o assunto, estamos realizando um apagão na Wikipédia.
A própria Casa Branca criticou
os projetos de leis. Durante o último fim de semana, três especialistas em
tecnologia da administração Obama divulgaram um comunicado em que
reconhecem a necessidade de controlar a pirataria online, mas
criticaram o SOPA e o PIPA.
Espero, sinceramente, que esta pipa
não decole, e que caia logo uma mosca nesta sopa, tornando-o intragável.
E isso deve acontecer logo, logo, por conta do forte lobby patrocinado pelas empresas do Vale do Silício.
Enquanto isso, cá pelas terras
tupiniquins, gravadoras seculares de peso contratam cantores
evangélicos, por
acreditarem que o filão por eles representado constituiria numa espécie
de reservatório
moral, que abominaria qualquer tipo de pirataria. Do outro lado,
gravadoras, emissoras e cantores deste seguimento fazem
campanhas abertas afirmando que pirataria não é apenas crime, mas
também pecado. O que no meio secular é tratado mercadologicamente, no
meio evangélico recebe um peso moral e espiritual. Alguns chegam a dizer
em debates radiofônicos que quem compra material pirateado não vai pro
céu. Desta maneira, os artistas gospel estão se impondo no mercado
fonográfico como campeões de venda. É claro que isso não passaria
despercebido pela indústria do entretenimento.
Apesar de ser um problema
característico do nosso tempo, haveria alguma instrução bíblica
que poderia ser aplicada?
Se piratear é
apropriar-se indevidamente de uma propriedade intelectual, logo é
roubo, prática vastamente condenada pelas Escrituras. Mas será tão
simples assim, preto no branco? Não haveria uma área meio cinzenta?
Se os textos escritos pelos
apóstolos e profetas não fossem extensivamente copiados, teriam chegado
até nós? E será que os copistas tiveram que pagar direitos autorais?
Quanto deveria custar uma cópia autêntica de uma epístola paulina no
mercado negro?
A sociedade para a qual os
princípios éticos das Escrituras foram propostos inicialmente era
econocomicamente agrícola. Por muitos séculos a base de
sua sobrevivência foi a coleta. Tudo o que fosse encontrado no
caminho podia ser adquirido com um simples estender das mãos. Ainda
hoje, ninguém tem uma crise moral por ter catado uma manga
encontrada na calçada. Ninguém vai se dar o trabalho de tocar a
campanhia do vizinho, importunando-o para devolver-lhe a goiaba que
caiu do pé cuja raiz está em seu quintal, mas cujos ramos se
estendem na direção da rua. Não se trata de desonestidade, mas de
uma convenção social implícita, um trato silencioso entre os
humanos.
Porém, quando a Lei de Deus foi
outorgada, a sociedade humana estava na transição entre a coleta e
o cultivo sistemático (agricultura). Mesmo defendendo o direito à
propriedade privada, a Lei faz certa concessão à velha e ingênua
prática da coleta. Talvez tal precedente lance alguma luz sobre
a questão da pirataria na internet. Afinal, cultura (que é o
que a internet pretende divulgar) é uma expressão agrícola.
Lei para quem
compartilha
“Quando entrares na vinha do teu próximo, comerás uvas conforme ao teu desejo até te fartares, porém não as porás no teu cesto. Quando entrares na seara do teu próximo, com a tua mão arrancarás as espigas; porém não porás a foice na seara do teu próximo.” Deuteronômio 23:24-25
Qualquer transeunte que
atravessasse uma plantação poderia coletar o produto para
consumi-lo de imediato, mas não para armazená-lo, o que indicaria a
intenção de comercializá-lo mais tarde. E não havia limites. Poderia comer
até se fartar. Usufruir, sim, mas não lucrar em cima disso. Poderia
colher as espigas com as mãos, mas não com a foice.
Trazendo este princípio para o
espaço cibernético, poderíamos dizer que é lícito usufruir
de tudo o que estiver acessível na rede, desde que para isso,
bastasse o click no mouse, jamais tendo que usar mecanismo de quebra
de segurança, geralmente usado por hackers. Mãos, sim. Foice, não.
Está disponível? Tudo bem. É lícito (ainda que não convenha…).
Mas se está protegido, deve ser respeitado. O que não se pode é acessar,
copiar, e depois, obter lucro com a venda do material. Isso seria
desonesto.
Lei para quem produz
“Quando também fizerdes a colheita da vossa terra, o canto do teu campo não segarás totalmente, nem as espigas caídas colherás da tua sega. Semelhantemente não rabiscarás a tua vinha, nem colherás os bagos caídos da tua vinha; deixá-los-ás ao pobre e ao estrangeiro. Eu sou o SENHOR vosso Deus.” Levítico 19:9-10
Quem produz informação (propriedade intelectual, cultura) deve permitir que pelo menos
parte dela fique acessível àqueles que não dispõem de recursos.
Mas infelizmente não é isso que acontece. A ganância não nos
permite compartilhar sem visar algum ganho. O segredo de sites como o
Wikipédia é justamente disponibilizar informações gratuitamente.
O lucro vem da publicidade, e não do conteúdo. Muitos outros sites,
inclusive de jornais, revistas e TV, têm seguido o mesmo caminho. O
Youtube, o google, e as redes sociais são um exemplo disso.
Alguns, como o Megaupload, oferecem contas premium pagas para seus
usuários, onde é possível baixar ou dar upload em arquivos com
maior rapidez. Mas quem não pode pagar, não fica impedido de
desfrutar de seus serviços.
“Quando no teu campo colheres a tua colheita, e esqueceres um molho no campo, não tornarás a tomá-lo; para o estrangeiro, para o órfão, e para a viúva será; para que o SENHOR teu Deus te abençoe em toda a obra das tuas mãos. Quando sacudires a tua oliveira, não voltarás para colher o fruto dos ramos; para o estrangeiro, para o órfão, e para a viúva será. Quando vindimares a tua vinha, não voltarás para rebuscá-la; para o estrangeiro, para o órfão, e para a viúva será.”
"Deuteronômio 24:19-21
Ah se aqueles que detêm e
controlam os meios de produção e distribuição pensassem e agissem
assim. Em vez disso, eles não abrem mão de nada. A avareza é a sua
bandeira. A ordem do dia é otimizar os lucros e minimizar as perdas.
Se Deus condena a pirataria (digo aquela descarada, em que as pessoas
se apropriam indevidamente de material intelectual para obter lucro),
Ele igualmente condena a avareza de quem impede que os menos
favorecidos tenham acesso à produção cultural.
Temos o direito de proteger o
que produzimos. Porém, quando houver algum descuido, e algo do que
produzimos ficar vulnerável, vazar na rede, devemos entender que
isso pode ter sido permitido por Deus para benefícios de outros. O que para nós foi acidental, para outros será providencial.
O que precisamos é de uma mudança de paradigma. Não dá pra viver com uma mentalidade retrógrada em pleno século da informação. Deixe-me compartilhar um trecho extraído do livro "Reiventando o capital/dinheiro" de Rose Marie Muraro (Idéias e Letras 2012) que li recentemente no blog de Leonardo Boff e creio que possa enriquecer nossa reflexão:
Queira Deus que o espaço cibernético
não perca tal característica, proporcionando à sociedade humana a
oportunidade de vivenciar o paradigma ganha/ganha. Afinal, ninguém
precisa perder para que outros ganhem. E na partilha de informação e
cultura, todos somos beneficiados. O que precisamos é de uma mudança de paradigma. Não dá pra viver com uma mentalidade retrógrada em pleno século da informação. Deixe-me compartilhar um trecho extraído do livro "Reiventando o capital/dinheiro" de Rose Marie Muraro (Idéias e Letras 2012) que li recentemente no blog de Leonardo Boff e creio que possa enriquecer nossa reflexão:
Na Pré-História predominava o ganha/ganha. Vigorava o escambo, isto é, a troca de produtos. Reinava grande solidariedade entre todos. No Período Agrário entrou o dinheiro/moeda. Os donos de terras produziam mais, vendiam o excedente. O dinheiro ganho era emprestado a juros. Com os juros entrou o ganha/perde. Foi uma bacilo que contaminou todas as transações econômicas posteriores. No Período Industrial esta lógica se radicalizou pois o capital assumiu a hegemonia e estabeleceu os preços e as taxas dos juros compostos. Como o capital está em poucas mãos, cresceu o perde/ganha. Para que alguns poucos ganhem, muitos devem perder. Com a globalização, o capital ocupou todos os espaços. No afã de acumular mais ainda, está devastando a natureza e aumentando o fosso ricos/pobres. Agora vigora o perde/perde, pois tanto o dono do capital como a natureza saem prejudicados. No Período da Informação criou-se a chance de um ganha/ganha, pois a natureza da informação especialmente da Internet é possibilitar que todos se relacionem com todos.
Minha intenção com este texto não é oferecer uma resposta final ao problema, que é bem mais complexo do que possamos averiguar aqui, mas tão somente instigar uma reflexão mais ampla e profunda da questão e de suas implicações. Sei que meu posicionamento pode parecer um tanto quanto heterodoxo, ainda que, a meu juízo, respaldado nas Escrituras, mas deixando de lado a hipocrisia... quem nunca baixou um arquivo que atire a primeira pedra!
Fonte: Hermes C. Fernandes
http://www.hermesfernandes.com/2012/01/pirataria-quem-nunca-baixou-um-arquivo.html
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